Capítulo 4.

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Mas eu estou cansado
Eu sempre estarei com medo
Linkin Park - Lost

— 4. A Humanidade sem Regras —

Finalmente conheci as demais pessoas do acampamento. Foram apenas alguns breves cumprimentos e trocas de nomes. Agradeço-as por não prolongarem muio tos diálogos comigo; não estou acostumada a isso. E as que insistiram um pouco mais em conversar fizeram a maior parte da conversa, enquanto eu acrescentava apenas comentários curtos.

Não foi ruim interagir com elas, mas foi um pouco estranho.

Já faz uma semana que estou aqui. Elisa não tocou mais no assunto sobre eu decidir ficar ou ir embora, mas percebo o quanto ela tem se esforçado para me acolher; quase me sinto culpada por ter desconfiado dela no início.

Contudo, dentre todas as pessoas que conheci, há apenas uma que ainda não vi pessoalmente. Luíza é o nome da jovem de dezoito anos para quem ainda não me apresentei, mas conheci sua irmã gêmea, Luana. Não sei porque ela não aparece muito por aqui, mesmo que viva no acampamento há bastante tempo. Também não perguntei o motivo; não quero ser invasiva.

Já está anoitecendo. Estou sentada ao lado de Roberto em frente à barraca médica, onde tenho passado os últimos dias. Como não havia nenhuma barraca disponível e as únicas com espaço eram as dos homens, Roberto disse que eu poderia ficar dormindo por aqui mesmo, pois seria mais confortável para mim.

Vejo Luana saindo de uma das barracas e, logo em seguida, uma jovem idêntica a ela; a única diferença entre elas é o cabelo.

Luana é alta e magra. Seu rosto tem uma simetria pequena e delicada, sobrancelhas finas e levemente arqueadas, lábios um pouco volumosos e ressecados. O cabelo de Luana é curto e castanho-claro, diferente do da irmã, que chega até abaixo dos ombros e tem duas tranças em cada lado da cabeça.

Não sei o que ambas vão fazer, mas vejo Luíza olhando para os lados com um olhar que conheço bem: desconfiança e medo. A garota pousa sua atenção em mim e me encara. Sei o que ela está fazendo, avaliando-me, vendo se sou uma ameaça. Isso desperta um pouco a minha curiosidade.

Luana percebe o comportamento da gêmea e toca seu braço, dizendo alguma coisa que faz a irmã desvia o olhar.

Sigo seus passos com os olhos até que elas desapareçam na área destinada aos banhos.

— Você deve estar se perguntando por que Luíza nunca sai da barraca ou tem aquele olhar no rosto. — Roberto faz desenhos na terra com um galho.

— Sim, mas não quero ser invasiva e me intrometer em algo que não devo.

— Não se preocupe. Todos desse acampamento sabem o que aconteceu com Luíza. Acho que devo contar a você, para que tome cuidado quando estiver perto dela.

Engulo em seco. Acho que não vou gostar de ouvir o que Roberto vai dizer.

— Bom, eu não sei muito sobre o passado das meninas, só o que Luana decidiu me contar. — Roberto franze o cenho. — Três anos atrás, quando eu, Felipe e Kenji saímos do acampamento para dar uma olhada na cidade, ouvimos uma explosão e fomos ver o que tinha acontecido. Quando chegamos quase perto, vimos duas meninas correndo. Uma com uma mochila nas costas e sustentava o peso da outra, que parecia quase inconsciente.

“Quando elas nos viram, quase atiraram na gente. Elas estavam fugindo de alguma coisa, e não parecia ser dos mortos-vivos. Percebi que uma delas estava muito machucada, com hematomas no rosto, marcas de asfixia e mancando. Tentamos nos aproximar e conversar com elas, mas Luana atirou em Kenji e o acertou no braço; por sorte, a bala passou de raspão.

“Líza mal conseguia se manter em pé e acabou desmaiando. Eu disse a Luana que era médico e queria examinar sua irmã. Depois de muita insistência da minha parte, soltei tudo o que estava nas minhas mãos e fiquei só com o kit de primeiros socorros. Luana deixou que eu me aproximasse, mas manteve a arma apontada para minha cabeça.

“Enquanto eu examinava luzia, percebi marcas de abuso sexual e tortura. Não consegui ver muito, porque Luana não permitiu, mas, por baixo do vestido branco e ensanguentado da irmã, vi queimaduras de segundo grau. Perguntei a Luana o que tinha acontecido, e ela respondeu que a irmã foi mantida em cativeiro por três meses e abusada por cinco homens todos os dias, até que ela descobriu e tirou a irmã de lá, explodindo o lugar.”

Fico em silêncio. Sinto uma grande repulsa por aqueles homens que, felizmente, nunca conheci. Imagino que Luíza tenha vivido um inferno durante aqueles três meses; arrisco-me a dizer que ela preferiria estar andando pelas ruas de São Paulo, lutando contra os mortos-vivos, do que ter encontrado aqueles homens. Isso é algo que eu desejaria se estivesse em seu lugar.

É nojento lembrar que os mortos-vivos não são as únicas ameaças neste mundo devastado.

— As consequências daqueles três meses deixaram marcas profundas em seu corpo e mente. Luíza entrou em uma depressão profunda e sofre de alucinações. De vez em quando, o acampamento é acordado ao som de seus gritos de pânico. A única pessoa que consegue se aproximar dela é sua irmã.

— Onde Luana estava durante aqueles três meses?

— Não sabemos. Ela não nos contou muito mais do que estou dizendo a você agora. O passado das meninas permanece um mistério para nós. Acho que Luana ainda não confia na gente. — Um suspiro escapa do médico. — O único momento em que vemos Luíza é quando ela vai tomar banho. É sempre nesse horário, e todos os homens do acampamento evitam a área para não fazê-la ter uma crise de pânico.

Ficamos em silêncio. Não consigo imaginar o que eu teria feito se passasse pelo que Luíza passou.

— Estou contando isso a você para que tome cuidado caso cruze com ela por acaso. Evite se aproximar muito e, principalmente, qualquer contato físico.

Assenti. Basicamente, o acampamento parece estar andando em um campo minado, tomando cuidado com seus passos para evitar acionar as bombas. E agora, eu também tenho que fazer isso.

Solto uma risada. Sem humor e sem emoção. Apenas uma risada desdenhosa.

— É como se as pessoas tivessem perdido suas coleiras e focinheiras e, então, finalmente, o portão do cercadinho onde tinha uma placa escrito “cuidado, cão bravo” fosse aberto, deixando-as livres.

Roberto ri, mas noto a ausência de humor.

— É exatamente isso. A humanidade já cometia atrocidades quando existiam leis e religiões atuando como coleiras, mas agora perdemos as únicas coisas que limitavam a verdadeira essência de cada pessoa. Como você falou, as coleiras e focinheiras foram retiradas, e agora cada um age conforme sua índole e princípios morais.

A humanidade está sem regras, e, sem regras, a humanidade é perigosa.

Não tive muito tempo para conviver com as pessoas. Quando tudo começou, eu era apenas uma criança de doze anos que não teve tempo para descobrir o mundo. Sou apenas alguém que cresceu sozinha pelas ruas devastadas de São Paulo, com pouco entendimento sobre a vida e sobre o comportamento das pessoas. Tudo o que sei é o que li nos livros.

Porém, a maior certeza que tenho é: meus maiores medos não são lidar com os mortos-vivos, mas sim com outros seres humanos. Ao menos aquelas aberrações não estão cientes do que estão fazendo, diferente das pessoas, que agem conforme seus desejos. Isso sim é assustador.

ECO DOS MORTOSOnde histórias criam vida. Descubra agora