De Ana Para Miguel

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Miguel,

São 3 horas da madrugada aqui, o que significa que aí é meia-noite. Fico me perguntando o que vocês estão fazendo. Penso nisso o tempo todo. E agora sei que, pela hora, vocês devem estar dormindo. Mas ainda me pergunto se cada um dorme na sua cama, João abraçado ao ursinho de lã azul, ou se estão os três juntos, na nossa enorme cama de casal que costumava parecer tão pequena, às vezes.

Hoje foi um dia difícil. Descobrimos mais um caso de Ebola, justamente quando achávamos que o surto havia finalmente sumido. Os pacientes curados ou em processo já comemoravam. Marcavam nas paredes o número de dias sem entrada de pacientes contaminados. Eram 12 dias. Até ontem, quando uma menina de sete anos foi internada.

Penso em Pedro, na mesma hora. E agradeço a Deus por ter meus filhos saudáveis e seguros com você.

Mesmo com essa má notícia, continuamos esperançosos. Recebemos notícias da equipe MSF da Libéria, que também parece estar curada, e é aqui ao lado. A nossa equipe está bastante animada com os resultados. Ontem, duas mães vieram me agradecer pela ajuda com seus filhos, Khadija e Yakouba, que estão finalmente curados. Eu as orientei por todo esse tempo, conversando com elas sobre a importância de dar amor a eles, mesmo não podendo tocá-los. Como já contei, a contaminação por Ebola é fácil e arriscada e então optamos por isolar os pacientes. Foi tão difícil para elas ficarem isoladas de seus filhos e, por isso, foi maravilhoso vê-las finalmente os abraçando e apertando e a emoção de também poder abraça-los e beijar suas cabecinhas foi muito grande.

Nós, psicólogos e médicos, vivemos vestidos como astronautas, cobertos dos pés à cabeça. Então, foi a primeira vez que Khadija e Yakouba me viam sem toda aquela parafernalha. Eles me olharam com curiosidade, e queriam mexer no meu cabelo. Aqui em Serra Leoa, as crianças são loucas pelos "pumwi", que é como chamam o homem branco. Acho que nos veem como uma espécie de super-herói. Mesmo quando estamos de astronauta, correm para cima da gente e não param de falar em sua língua de sons enigmáticos. Conte para Pedro e João que a língua que as crianças falam aqui é chamada Krio, e que vou ensinar a eles o que tiver aprendido depois.

Sinto saudades imensas e tudo o que faço, seja cuidar dos pacientes ou lavar as mãos, faço pensando em vocês. Às vezes, me acho uma péssima mãe, por abandonar meus pequenos e ir para o outro lado do mundo, mas... Ah, Miguel, essas pessoas aqui precisam tanto de ajuda! É tanta miséria e violência que o sangue não faz mais diferença para mim. Meus enjoos ao ver feridas graves passaram de vez. Chega uma hora que essa sensação não cabe mais, pois precisa dar lugar à força, à ação, à necessidade de ajudar que elas mais precisam no momento.

Mesmo assim, sentimentos e sensações e as suas diferenças. Minhas sensações vêm e passam, mas meu sentimento de saudade e de amor não vai passar nunca. Mande um beijo enorme aos nossos pequenos e diga a eles que estaremos juntos nos sonhos. Que é para fecharem os olhos e prestar bastante atenção no silêncio, e então conseguirão ouvir a minha voz baixinha em seus corações.

Eu amo você.

Beijos infinitos,

Ana

(43 dias)


Uma Carta Para O Meu AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora