A Voz

7 1 0
                                    

Quem será a voz de uma mulher, senão ela mesma?

Mas, quando ela não poder falar, quem falará por ela?

"Cala a boca!".

Essas foram as primeiras palavras que ouvi naquele domingo, o dia da família, de descanso, de abraços e sorrisos. Era assim que eu imaginava antes de subir ao altar e dizer "sim." Mas, em poucos dias o castelo que pensei ser sólido, desmoronou, como areia levada pelo vento. Aos poucos, a gentileza, o carinho, cuidado e o "amor" deram lugar a irritabilidade, o desdém, a violência, e a insegurança. O meu pecado: Respirar.

"Eu te amo!"

Ele disse depois do primeiro tapa.

"Me desculpe".

Continuou ele.

"A culpa foi sua por ter me irritado. Já disse que não quero você sorrindo para outro homem."

"Eu só disse bom dia."

Inocente argumentei. Mal eu sabia que o tapa era praticamente nada perto do que estava por vir. Algumas pessoas dizem:

"Ela gosta de apanhar, não deixa ele porque não quer."

Cruéis.

Minha mãe disse: "Deixe-o. Nós te ajudamos, você pode ficar aqui em casa." A proposta era tentadora, e eu quase podia ver uma luz, como de uma lanterna fraca, no meio de uma imensidão escura.

"Se você me abandonar, matarei toda sua família."

Medo.

Por fim, a lanterna se apaga, como posso ter sangue em minhas mãos daqueles que amo? Sangue da minha mãe? Da minha garotinha?

Dias, meses, anos se passaram, e tudo continua igual. Havia dias em que eu quase acreditava viver um casamento normal. Ele ia trabalhar, eu preparava o café da manhã. Durante o dia, cuidava da casa e da nossa filha. À noite, o jantar estava pronto quando ele chegava. Se eu não estivesse destruída por dentro, talvez dissesse que foi um bom dia. Mas, diante das situações, isso seria apenas ilusão de minha parte.

E se engana quem pensa que, depois de um dia "perfeito", nada mais poderia acontecer.
Você já ouviu falar sobre estupro conjugal?

"Mulher, tire a roupa e abra as pernas."
"Meu ciclo começou hoje e estou com cólica."
"Me obedeça."

Ele puxa meu cabelo e eu joga na cama. Com brutalidade, retira meu short, minha peça íntima e o absorvente.
Mais uma vez impotente.
Mais uma vez usada como banco de esperma.
Sinto dor, muita dor.
Dor no corpo.
Dor no coração.
Dor na alma.

Houve momentos em que pensei em provocá-lo de propósito, só para que ele me batesse até a morte. Mas esse pensamento desaparecia quando olhava para minha filha, com seu sorriso inocente.

Hoje, acordei decidida a mudar minha vida. Sete anos de sofrimento. Sete anos de dor. Minha filha fez seis anos ontem. Comemoramos com alegria, rodeados de tios, tias, primos e avós. Uma comemoração simples, na casa da minha mãe. As ofensas e reclamações daquele que me jurou amor e proteção não me atingiram; aquele dia era importante demais. Finalmente, minha menina iria para a escola.

"Não insista nessa ideia de escola. Ela é pequena demais. Só vai quando fazer seis anos. Você quer é ficar se mostrando para os homens."

Todos os meus passos foram vigiados, até mesmo na casa da minha mãe. Naquele dia, aproveitei a oportunidade. Levei minha filha para o quarto e coloquei para dormir. Eu sempre carreguei comigo uma carta, escrita há quatro anos, mas nunca tive coragem de entregar. Naquele momento, tirei-a do bolso e escondi-a debaixo do colchão. Foi rápido, antes que ele surgisse no quarto.

"Você está demorando", ele resmungou.

Dei um beijo na minha filha, sentindo o cheiro doce do seu pescoço, antes de sair. Ele estava bêbado e falava alto, quase acordou a menina.

"Esse homem é louco por você, não te deixa por um segundo."

Alguém brincou quando retornamos para sala.

Louco por mim, será?

Uma hora depois, nos despedimos de todos. Meu irmão sugeriu chamar um carro de aplicativo, preocupado com o estado dele. Por um momento, pensei no quanto seria bom se ele morresse em um acidente. Em seguida, me arrependi.

"Cara, acho melhor você não dirigir, está muito alto, deixa minha irmã fazer isso."

"Mulher não dirige meu carro."

"Vou dormir aqui com a mamãe", disse meu irmão mais velho, sorrindo, sem ter ideia do que realmente acontecia. Ele mora longe e nossa mãe sempre esconde a verdade dele. Eu concordava, temendo que ele fizesse algo que pudesse arruinar sua vida por alguém que não vale a pena.

Mais um domingo, abro a porta do quarto da minha garotinha e sorrio ao ver suas bonecas com batom, que saudade, apenas algumas horas e estou com saudade da sua voz, sorriso e cheiro.

"Cadê a chave do meu carro?"

"Ontem viemos em um carro de aplicativo, seu carro ficou na minha mãe. Você estava tão bêbado que o motorista precisou me ajudar."

Respondo de costas, estou na pia lavando as folhas de uma alface, já passam do meio dia.

"Você trouxe um homem pra dentro da nossa casa", diz com a voz rouca pela bebida do dia anterior. Ele puxa meu cabelo que está preso em um rabo de cavalo. Com força me joga no chão.

"Ele só me ajudou até a portaria."

Argumento. Ele me chuta.

Uma, duas, três vezes.

Coloco as mãos na boca para abafar meus gritos de dor, sou proibida de gritar.

Minha costela dói, gemo bem baixinho.

Minha cabeça lateja e eu sei que ele ainda não está satisfeito.

"Cadê a criança?"

É assim que se refere a nossa filha.

"Você quer que ela seja piranha igual a você. Deixou a menina em uma casa cheia de macho?"

Ele me arrasta até a cama. A princípio, me bate em qualquer lugar, mas prefere continuar na cama para não fazer muito barulho por causa dos vizinhos.

Enquanto sou arrasta um sentimento diferente surge dentro de mim. Não estou com medo, minha filha não está aqui.

Ele me joga na cama como eu fosse um saco de estrume.

"Sua vadia."

Perdi as contas de quantos socos levei, ele está transtornado, em sua mente doentia pensa que o trai.

Suas mãos vão para meu pescoço e prevejo que é o fim.

Fim de uma vida sem vida.

De um amor sem amor.

De dor e sofrimento.

Quando o ar me falta, sorrio.

Querida mãe, se a senhora está lendo esta carta, é porque finalmente encontrei paz.
A única coisa que me mantinha viva era minha garotinha, proteger meu bem mais precioso era minha missão. Finalmente consegui afasta-la do monstro, então posso morrer feliz. Junto a essa carta tem a certidão da sua neta, e um documento onde passo a guarda dela para senhora. Me faz um favor diga a ela que a amo, que nunca deixarei de amar.

Perco as forças e a vida me escapa, minha última imagem foi da minha garotinha me dando adeus.

A vida se esvaiu. Minha voz foi silenciada.

Quem falará por mim?


Ass.: Bia Almeida

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Nov 05 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

ElasOnde histórias criam vida. Descubra agora