Prólogo

16 1 0
                                    

A chuva batia incessante nas vidraças quebradas, ecoando com um som metálico. Cada gota parecia um martelo, perfurando a quietude de um lugar esquecido. No fundo, as sombras dançavam ao som de máquinas desligadas, cujos tubos de neon piscavam, emitindo uma luz pálida e tremeluzente. O laboratório era um refúgio improvisado, uma cápsula do tempo repleta de anotações, fios desconectados e protótipos abandonados.

Liam observava, de pé, em silêncio absoluto. Seus olhos, fixos em uma tela sem imagem, refletiam a sombra de um protótipo de metal reluzente sobre a mesa. Ele parecia alheio à chuva que ainda batia com fúria contra as janelas, imerso em pensamentos profundos sobre o que havia criado.

Mas não estava sozinho. Lá, no canto da sala, uma figura pequena e fragilizada estava parada, seu corpo tenso, os olhos arregalados, refletindo a luz tremeluzente do laboratório. Lucas. O garoto estava quieto, como se cada movimento fosse uma ameaça.

"O que isso faz?", Lucas murmurou, mais para si mesmo do que para Liam.

Liam moveu os dedos suavemente sobre os controles, ativando o que parecia ser uma prótese. Uma mão metálica com sete dedos ergueu-se lentamente, mas seus movimentos eram desajeitados, quase erráticos. Liam franziu o cenho, e seu olhar se encheu de inquietação.

"Não deveria fazer isso... os pulsos mudam constantemente", ele murmurou, observando a mão enquanto tentava estabilizar os sinais. "É impossível manter o controle... os sinais estão se sobrepondo."

Ele deslizou os dedos pela superfície de controle, tentando enviar comandos mais precisos, mas a mão de metal reagia com movimentos fora de sincronia. Cada tentativa de ajuste parecia apenas aumentar a imprevisibilidade da prótese. Liam sabia que o sistema estava captando os impulsos, mas a tecnologia de leitura neural ainda parecia instável, oscilando entre captar suas intenções e criar interferências desconexas.

Lucas olhava, fascinado e intrigado, sem entender o que estava acontecendo. Ele percebia a tensão de Liam, que, mesmo em silêncio, parecia travar uma batalha invisível com a máquina.

"Essa interface... deveria interpretar os impulsos com precisão", Liam murmurou, mais para si mesmo. "Mas a instabilidade neural... é como tentar controlar uma corrente de água com as mãos."

Ele deu um passo para trás, seus olhos fixos na prótese como se estivesse diante de um enigma insolúvel. Lucas não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas, naquele momento, sentiu que estava diante de algo extraordinário — e talvez perigoso.

"Como você quer controlar máquinas com o pensamento se você não consegue controlar nem mesmo os seus próprios pensamentos?", Lucas perguntou, sua voz baixa e cheia de incerteza, mas Liam não pareceu ouvir.

De repente, Liam se virou abruptamente para Lucas, seu olhar fixo e sem emoção. Ele falou de maneira quase mecânica, com uma precisão técnica fria, como se fosse um robô.

"É só pensar e os eletrodos vão captar os sinais elétricos das pontas dos meus dedos. Com esses sensores de eletromiografia de alta precisão, deveria ser simples interpretar os pulsos elétricos enviados pelo meu cérebro", disse Liam, quase sem respirar.

Lucas, com seu rosto ainda imberbe, parecendo mais novo do que sua idade, olhou para Liam, seus olhos cheios de um brilho de curiosidade, mas também de uma certa confusão. Ele não parecia nem mesmo ter passado pela puberdade ainda, seu corpo ainda cheio da fragilidade de um garoto.

"O cérebro não é simples como você pensa", Lucas respondeu, tentando se expressar com mais empatia. "Mesmo que você pareça um robô às vezes, com esse seu jeito estranho, você tem sentimentos, emoções... tudo isso é complexo. São muitas variáveis. Não entendo muito bem, mas meu pai dizia que as pessoas são complicadas."

Liam ficou em silêncio por um momento, processando as palavras de Lucas. Era difícil para ele compreender o que o garoto queria dizer. Para ele, os processos mentais eram dados a serem interpretados, simples cálculos que podiam ser analisados e reproduzidos. Mas a complexidade do ser humano... isso ainda era um mistério que ele não conseguia resolver.

Liam abandonou sua mesa e assumiu uma postura misteriosa, sacando duas baquetas. Ele começou a batucar freneticamente as pernas, como se estivesse tocando uma das músicas de rock metal que adorava, mesmo com uma bateria completa ao lado, intocada. O som das baquetas batendo com força sobre suas coxas preenchia o laboratório, como um ritual solitário. Lá fora, estrondos distantes ecoavam como se estivessem vindo de um deserto sem fim, reverberando em um eco contínuo. Liam ignorava completamente, já acostumado com esses ruídos, como se nada no mundo pudesse competir com o que estava acontecendo dentro de sua mente.

Lucas, por outro lado, continuava no seu cantinho, escondido atrás de um birô abarrotado com peças largadas, protótipos inacabados, alguns já enferrujados pelo clima seco e árido. Ele observava a cena com olhos grandes e curiosos, mas também com um toque de receio.

"Não dá, vamos todos morrer se eu não conseguir fazer isso funcionar de novo!" Liam gritou, a voz carregada de desespero, enquanto ainda batucava furiosamente. "Eu ainda não entendo porque não consigo fazer funcionar!"

Lucas se aproxima vagarosamente até a mesa, tentando compreender o caos à sua frente, puxou uma cadeira e se sentou. Seus olhos se fixaram na prótese com sete dedos longos e esguios que se estendiam de uma base humanoide, fixada com fios soldados de maneira brusca e improvisada. Ele tocou a base de controle, e, lentamente, a prótese começou a se mover, mas sem consistência, como se estivesse lutando contra si mesma.

"Isso é doidera", Lucas disse, quase para si mesmo, enquanto tocava os sensores da prótese. A mão metálica se moveu lentamente, como se estivesse testando seus limites. Ela se aproximou da xícara de café com uma precisão desconcertante, até que, no momento em que tocou a borda, a pressão fez com que a porcelana rachasse.

Com um estalo seco, a xícara se partiu, e o café quente se espalhou pela mesa, manchando os fios e os papéis ao redor. O líquido escorreu entre os fios expostos, pingando sobre o chão. O som das gotas batendo no metal ecoava pela sala, quebrando o silêncio pesado.

Lucas recuou, seus olhos fixos na cena que se desenrolava diante dele. Ele não conseguia afastar o olhar, vendo o café misturado com os fios soldados, o sistema da prótese se tornando cada vez mais instável.

Liam, por sua vez, não reagiu de imediato. Seus olhos estavam fixos na mesa, o semblante impassível — ele estava acostumado com falhas como aquela. Depois de alguns segundos, ele parou de bater as pernas. "Não adianta Lucas, se isso não funcionar hoje, vamos todos morrer e não tem mais o que fazer." Lucas olhou aterrorizado para ele, enquanto o silêncio preenchia a sala. O som da chuva parecia mais distante, como se tudo estivesse acontecendo em câmera lenta.

O silêncio tenso foi interrompido pelo estrondo da porta vindo do fundo da sala.

— Liam, você está brincando com seus brinquedos enquanto o mundo está desmoronando lá fora! Tem pessoas morrendo! — A figura entrou, coberta de poeira, como se tivesse corrido por muito tempo. Seus olhos claros carregavam uma tensão que parecia irremediável. Ele se aproximou rapidamente de Liam, com o corpo tenso, como se algo iminente estivesse prestes a acontecer. — Temos que ir agora! Não temos tempo! O que você está fazendo aqui não vai adiantar se todos morrermos! — Disse ele, enquanto tirava os cabelos longos do rosto.

"Papai, vamos todos morrer!" disse Lucas enquanto corria com lágrimas nos olhos para os braços do homem. "Ele disse que não tem mais jeito, eu não quero morrer, pai."

"Vai ficar tudo bem, filho", consentiu o homem, enquanto enxugava as lágrimas do pequeno com sua manta velha e rasgada que lhe servia de agasalho.

Liam sentiu um arrepio subir pela espinha ao ouvir aquela cena — algo que ele não estava acostumado a sentir. "Não tem mais jeito, amigo", disse Liam enquanto observava a sala com seu caos e rastros de falhas que pareciam refletir seus próprios pensamentos fragmentados. Ele ficou parado por um momento, encarando a prótese do outro lado da sala, hesitando. As palavras de seu amigo e de Lucas reverberaram em sua mente, mas sua lógica, fria e calculista, estava travada. A realidade lá fora, o caos que se desenrolava, parecia distante e ao mesmo tempo insuportável. Mas uma coisa era certa: o tempo se esgotava.

Refugio dos ocultosOnde histórias criam vida. Descubra agora