Antes do mundo acabar -por outros olhos 002

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Agora que descanso em paz posso dizer. Athena veio para nossa casa dois anos e meio antes de tudo dar errado. A mãe dela já não a aguentava mais, essa é a verdade. Mas -como toda mãe que preza a sanidade mental da filha- disse à ela que o intuito era se aprofundar nos estudos e essas coisas. Aqui Athena sempre se dispôs a seguir as regras, ao menos, as básicas. Levantar arrumar a cama não se atrasar para a escola não se atrasar para o almoço não voltar depois das 9h. Lá, creio eu, essa menina nem sabia o que eram regras. Um dia ela brigou com a mãe e por Deus, essa menina saiu de casa desembestada e voltou com o cabelo azul. Minha filha ficou louca três dias e no quarto mandou ela pra cá.
Quando Athena aterrizou aqui elogiei as tuas roupas, o teu cabelo eu disse que estava enorme e sedoso como nunca antes { achei que era um ponto de rebeldia e que se ela visse não estar afetando ninguém, pararia.
Nunca estive tão errado em toda minha vida. Ela nunca parou. Um tempo depois chegou com diversos piercings foi-me a gota d'água, fiz ela tirá-los -com um certo medo dela se rebelar- era preciso que ela soubesse quem mandava. Essa é Athena. O mais importante a se saber é que ela não é durona. É frágil. Ela se importa demasiadamente com o corpo -nãoécoisadeadolescente- várias vezes já notei que pulara refeições e tinha tamanha neura em academia exercício treinar correr pular nunca se manter parada. Eu a pegava no colo e a dizia que era linda e que precisava aquietar-se um pouco e poupar energia para nossas tardes de bingo. Depois pegava a panqueca que ela fingia comer e na verdade jogava na plantinha ao lado e dizia à ela que eu não contaria para vovó se ela comesse todas na próxima rodada e fora assim por muito tempo. Até ela comer todas sem que eu sequer me lembrasse da troca que fazíamos. Até ela, de certa forma, se curar. Athena sempre dizia que nada a incomoda, que nada a deixa infeliz, que nada a aborrece, que nada é capaz de amolecer seu coração. Quando o pai foi embora de casa -porque traía- Athena não chorou, não pediu pra que ficasse, nunca disse sentir falta, nunca lembrou dele, eu acho. E ela só tinha sete anos. Hoje, com dezessete, eu não sei o que é que se passa na cabeça dela, mas sei que não gosta de tocar no assunto. Então não tocamos. Talvez seja essa amargura que faça com que se rebele. Foi o que a psicóloga -a qual largou por motivos de: nãoprecisoserajudadaseusvelhosrabujentosvocêsnãosabemdenada- disse para nós na última terapia.
Há um ano e meio tudo deu errado. Peguei uma tremenda trombose, o médico não estava lá para fazer minha cirurgia, a cidade era pequena, não haviam muitas alternativas. Morri a caminho de um grande hospital -há duas horas da 'big city' como Athena chamava nosso lugarejo. Deu errado pra caramba.
Sabe o que é mais impactante. Me recordo de vê-la chorar. Debruçada sobre meu corpo já frio na sala do hospital. E depois a caminho do necrotério. E depois no enterro. Ela se agarrou ao meu caixão e chorou tão alto que eu senti vontade de levantar e abraçá-la. Só que Athena não chorava, não sofria, não amolecia.
Eu sabia que ela continuaria a morar com a avó -mesmo com todas as desavenças- pois elas precisavam uma da outra. Em algum conceito gramatical estavam sozinhas. Me preocupou se ela ficaria bem. Se conseguiria se manter sã. Porra, minha garotinha.

AthenaOnde histórias criam vida. Descubra agora