Anhangabaú, cidade fictícia, região satélite de São Paulo, Verão de 2016
Se alguém chegasse ali às oito e trinta e dois da manhã, encontraria Cideria em pé, parada, encarando a persiana fechada. De longe, ao que tudo indicava, parecia se tratar de uma contemplação excêntrica ou um devaneio matinal preguiçoso. Contudo, os punhos cerrados e as veias do pulso saltadas apontavam para outra coisa. Havia algo intenso se passando em seus pensamentos.
Então, como num ímpeto de uma fera, atacou com os dois braços o topo da sua cabeça, arrancando a presilha preta que prendia seus cabelos em um coque, levando-a ao canto da boca, sentindo por entre caninos o gosto do plástico. Livres, seus cabelos desceram até atrás do joelho, cobertos por uma saia jeans grossa. Em seguida, jogou um pouco o corpo para trás, desembaraçando-os com as mãos e, uma vez satisfeita, os içou, puxou, entrelaçou e transpassou-os até ter erguido um apertado novo coque.
Suspirando, deu um passo à frente, estranhamente solene, ficando mais perto da janela. Com o dedo indicador como uma garra, abriu um buraco por entre as lâminas empoeiradas e enfiou o olho direito dentro. Do outro lado da rua, uma paisagem tristemente serena. Ao meio, como de costume, o carro vermelho carcomido do seu Elias, o padeiro que trabalhava no final da esquina. Ele nunca mandou arrumar aquele amassado na porta ou aquele vidro trincado. Atrás do carro se levantava o orelhão verde, sujo e riscado. Na última eleição, o prefeito prometeu, de maneira bem emocionada, arrumar todos os orelhões da cidade, como quem promete a uma mãe que irá achar seu filho perdido. No fim, nada foi feito. Atrás dos dois, sumarizando aquela ode à decadência, um terreno baldio separava a loja de roupas usadas do aviário, com labaredas de mato selvagem.
Se fumasse, certamente seria o momento ideal para acender um daqueles filtros vermelhos entre suas presas enquanto voltava para sua mesa. Mas Cideria nunca foi mulher de se entregar a vícios, muito embora sim, havia de fato algo dentro dela que volta e meia se remexia urgente, implacável, faminto e voraz, mas não era algo tão simples de ser pacificado.
Na noite anterior, havia ido a um velório. De algum modo que não tinha entendido por completo, um caminhão de toras recém-cortadas havia descarrilhado em cima do corpo do filho mais velho de Rosilda, Jeziel. No morgue, tentou achar respostas, tudo em vão; nem se tentasse muito conseguiria. A figura de Rosilda, estirada em cima do caixão lacrado em prantos e gritos, tinha alterado os nervos de todos ao redor, inspirando em alguns o mais fúnebre silêncio e em outros o mesmo choro histérico. Ninguém conseguia chegar perto de Rosilda; teve um que até levou um tapa dela quando tentou tirá-la dali. Essa gentinha, pensou Cideria, lembrando do que vira enquanto rasgava as bocas dos envelopes que tinham acabado de chegar. Fedia tanto lá dentro; duas pessoas tinham vomitado, alguém tinha lhe contado. Uma era um bebê, que devia ser de Silvia. Aquela mulher não parava de exibir aquela criança, levava-a para todos os lugares, "patética".
De qualquer modo, teria que, por enquanto, se contentar com os pedaços de história que tinha. As várias versões possíveis do acidente rodavam em sua mente, com direito até a efeitos sonoros, ossos quebrando, como imaginava agora. Por um momento, quase sorriu. Beira Rio Cimentos e Materiais para Construção LTDA, leu em um dos destinatários antes de jogar os restos de papel no lixo. Do mesmo modo que era frustrante, também constituía um alívio pensar que provavelmente estivesse chegado no mais longe que uma mulher como ela podia chegar profissionalmente: uma secretaria há mais de quinze anos. Quando voltou de São Paulo, teve medo de virar uma empregada doméstica de alguma mulher irritante, como sua irmã Cida. Talvez tivesse sido um pouco de sorte, como alguns insistiam em dizer para ela; porém, Cideria sabia que tinha feito tudo que pôde para estar onde estava, inclusive aquele curso de informática que relutou por alguns anos.
O serviço, na maior parte das vezes, era simples. Tinha suas molduras em calorosas burocracias, cuidadosamente infiltradas por sucintos padrões de procedimentos. Era o quadro perfeito para alguém tão pragmática como Cideria ter pendurado em sua sala de estar. Com esse emprego, conseguia navegar tranquilamente por aquele mundo em paz. Conseguia ter o respeito que achava decente para seus padrões. Não era como a maioria das mulheres da igreja e também não era uma mulher que podia ser vista como alguém de índole duvidosa pela congregação.
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O MUNDO É CONCRETO
Short StoryEm uma cidade fictícia nos arredores de São Paulo, Cideria, uma mulher marcada pela dureza da vida, vive um cotidiano repleto de tensões entre sua fé, seu passado e os segredos que guarda. Trabalhando há anos como secretária em uma empresa local, el...