00 | prólogo: ela tinha que fazer jus ao seu autoapelido

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O MAR PARECIA IMENSO À SUA FRENTE  e talvez realente fosse mesmo. O vento agitava as ondas, e o sal no ar se misturava com a sensação de liberdade que uma pessoa tinha tentado cultivar ao longo dos anos. Porém, Leader, ou Beatriz Alburquerque como fora batizada, não se sentia livre; talvez nunca se sentisse. 

O horizonte diante dela era apenas mais uma linha no grande livro da sua ainda jovem vida, e suas memórias, sempre vivas — o que ela detestava profundamente —, eram quase como se o tempo fosse um fio que nunca se rompesse, tornando impossível escapar-se do passado, como se fosse impossível para ela esquecer, esquecer uma memória, mas, por algum motivo, ela lembrava de tudo; algo nunca antes visto na sua família.

 Ela não sabia o que era viver sem lembrar. Sem lembrar de cada suspiro, cada toque, cada palavra. Seu cérebro, como uma máquina implacável, gravava tudo, até os detalhes mais ínfimos. E isso era desesperador para si.

Ela se lembrava da primeira respiração, de quando ainda estava no ventre da mãe, sentindo as batidas do coração dela, a pressão suave, a sensação abafada e quente dentro do útero e como se sentia acolhida, mesmo nem sabendo como fora parar ali. Seu pequeno corpo, ainda sem forma definida, dançava junto com os sons abafados, mas já capaz de captar os ecos do mundo exterior. Lembrava-se de como a luz do sol atravessava a pele de sua mãe, de como a voz dela era familiar e reconfortante — reconfortante demais, amava ouvi-la cantar enquanto acariciava a ainda pequena barriga —, mas também do som grave e inconfundível do pai que queria logo que ela nascesse, desde que ela fora colocada ali dentro do ventre da sua querida mãe. Ele sempre falava de forma suave e animada, mas também algumas vezes como se fosse um sussurro de tempestade. 

Seu pai sempre fora homem de alma guerreira, e Leader sempre soube disso mesmo antes de abrir os olhos para o mundo.

Ela se lembrava do primeiro choro, da sensação de estar finalmente fora, com a pele fria do lado de fora e o ar tão gelado, tão estranho. Mas a mente dela não parava, não deixava nada escapar. A dor horrível que sentira na primeira respiração por conta dos seus pulmões finalmente começarem a serem utilizados se misturava à sensação de ver sua mãe pela primeira vez quando seus olhos finalmente focaram o rosto belo com covinhas, os abraços acolhedores, os olhos dela, que brilhavam como se ela estivesse segurando fosse a joia mais linda do mundo. De facto, para si era.

Porém, mal podia imaginar Leader que ali, uma batalha estava apenas começando. 

Quando a pequena tinha apenas oito anos, o mundo dela começou a se desintegrar. A guerra que vinha para seu país, que já era uma sombra distante de si devido a não entender nada, se aproximou com a violência que só a realidade é capaz de trazer. Seus pais, com raízes profundas em Portugal, viviam entre o mundo do crime e o da realeza pirata — sim, isso mesmo, seu pai era o rei dos piratas, literalmente —, onde as lealdades eram frágeis e a vida de um pirata valia menos que o ouro que ele roubava — ou então não, tinha vezes que o pirata valia mais que sua fortuna por ser derrotado pelo rei dos piratas. 

Mas o que Leader não sabia naquela época era que ela já estava marcada. Não por ser filha do homem do rei dos piratas, que liderava um dos maiores e mais temidos navios piratas da costa portuguesa, mas sim por sua própria linhagem, que corria pelo sangue de suas veias. Seu pai não nasceu rei dos piratas, mas nasceu pirata, cresceu pirata, fez uma pirata, assim como todos na família Albuquerque. Esse família cujos nomes ecoavam nos ventos como uma lenda urbana que todos tinham medo até da falar pelo mundo em seus próprios idiomas, com medo que eles aparecessem no segundo a seguir. 

Seus ancestrais haviam sido caçadores de homens, completos mercenários com um objetivo claro: garantir que seu nome fosse lembrado através das gerações.

E foi.

Foi assim que a pequena Beatriz, aos oito anos, se viu com uma cabeça valiosa. Não era mais designada como uma mera criança como as outras, mas uma peça de um jogo de xadrez e os piratas queriam fazer o tão valioso cheque mate ao derrotá-la. 

O Governo Mundial queria sua captura, os piratas queriam usá-la, e os próprios Albuquerque queriam mantê-la escondida para preservar sua linhagem, seu sangue. Seu nome verdadeiro, sua vida após conseguir fugir e declarada como morta por poucos anos até acharem, tudo era um mistério, e enquanto ela tentava entender quem realmente era naquele mundo sem ser o que seu sangue dizia ser, o mundo ao seu redor desabava por completo, tanto que pareceu começar exatamente onde cresceu o resto da sua infância — se podemos chamar de infância.

Aos dez anos, ela já sabia que não tinha mais infância. Foi achada, capturada, recapturada de volta pelos dos seu sangue, viu o rosto da sua mãe uma última vez... mas essa memória poderia ter sido apagado com o ato horrível feito na sua frente, mas não, nenhum dos atos foi. O pai, protegendo-a, deixou para trás a única coisa que ela poderia realmente chamar de lar: sua família, seu nome. Ele se entregou e morreu em praça pública pela Marinha. 

Ela viu isso de primeira fila. 

Mas Leader, com sua memória infalível, não se esqueceu de nada, o que lhe dava calafrios lembrar de cada detalhe. Ela se lembrava de cada detalhe da noite em que fugiu depois da morte dos seus pais, fugindo mais uma vez sabe-se lá para onde. Sua única alternativa era voltar para o local onde vira a crescer de vez, conseguindo forjar pela primeira vez sua morte durante anos, começando com um simples ato de coragem — seus cabelos longos estavam cortados, rapados de lado com uma navalha, e então ela se fingiu de garoto até descobrirem onde ela passou a passar o resto da sua infância que ela era uma menina por seus peitos começarem a crescer, mesmo que fracos, os biquinhos se notavam e ela odiou.

Odiava pensar que se fosse homem, talvez tivesse sofrido menos.

Anos de fuga, forjou a morte, esconderijos quando iam até à aquela, e o jogo de disfarces quando retornou à sua família anos depois, já com dezasseis anos, estando com eles até atualmente, com vinte e dois. 

Suas perucas, aquelas que escondiam seu corte de cabelo original — um mullet tão distinto quanto sua alma rebelde, não o conseguira deixar, lembrava-se da primeira vez que tinha cortado o cabelo, o que, certamente, lhe dava jeito. Sem ser seu peito quando estava solto, ela parecia um menino, então só tinha uma opção viável: fingir quando precisaria, igual com as perucas, e isso deu certo; foi a sua única forma de sobrevivência, igual com sua família ao pisarem no território francês com um objetivo de aniquilar a realeza e tomar França para eles, para a família Albuquerque. 

Ninguém poderia saber quem eles realmente eram, ninguém poderia saber o nome que eles carregavam, sendo o da garota o principal antes de se tornar apenas "Leader" — autoapelidando-se assim ao voltar para os do seu sangue.

Mas, a cada novo disfarce, ela se lembrava de tudo. Da dor de ver sua mãe pela última vez, das risadas abafadas que ecoavam em noites silenciosas enquanto ela se tentava ser uma criança normal, das noites em que ela se escondia dos caçadores que queriam sua cabeça.

Porém, a memória dela não era um peso; parecia uma maldição. O simples ato de recordar tudo, de se lembrar de cada gesto, cada som, a fazia sentir-se viva de uma maneira que ninguém mais poderia entender. Cada pedaço de sua vida estava eternamente gravado em  si, não apenas na mente, mas na essência de seu ser. Sua história, sua identidade, eram como correntes invisíveis que a prendiam, mas ao mesmo tempo, davam-lhe o poder de controlar quem ela era. Pois, pelo menos, ela conseguiu saber quem era neste tempo: Leader.

Naquele momento, ela estava no barco. olhando para o horizonte após terem que tirar o barco de onde estava por quase serem descobertos. 

Olhava o horizonte enquanto os marinheiros trabalhavam, mas o horizonte não era o futuro. Era apenas mais uma extensão do passado. O mar que a rodeava, sempre constante, como a memória de tudo que ela perdera. Ela se lembrava de tudo, e nada poderia apagar a dor, a solidão, a luta que vivera todos aqueles anos. 

No entanto, não poder-se-ia negar que também havia a força e vontade inabalável dela de seguir, de lutar, de se tornar a mulher que sempre soubera que poderia ser. Liderar, governar, ser mais que apenas uma pirata. Ser quem ela fosse, sem desculpas.

Ela tinha que fazer jus ao seu autoapelido.

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⏰ Last updated: Nov 21 ⏰

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Atenciosamente, Monsieur Magnifique | park seonghwaWhere stories live. Discover now