Quando nascemos, somos jogados num emaranhado de estruturas: sociedade, família, convenções que nos moldam antes mesmo de entendermos quem somos. Crescemos sufocados por estereótipos, presos em caixas de regras rígidas. Raramente questionamos, até que a rebeldia emerge. Queremos saber o que nos pertence, o que podemos reivindicar sem sermos esmagados.
Mas e se não houver tempo? E se as perguntas ficarem suspensas no vazio? Foi o que aconteceu comigo. Meu tempo se esgotou antes que pudesse sentir, questionar, viver. Talvez por isso eu ainda esteja aqui. Não um prisioneiro, mas algo que se agarra ao mundo com unhas e dentes.
Eu não fiz todas as perguntas. Não vivi todas as vidas. Agora, sou um eco errante. Um espírito que percorre cidades, lares, mentes. Consumo fragmentos de existência, provocando pequenas dissonâncias, instigando mudanças. O bem e o mal se tornaram irrelevantes para mim. Tudo o que importa é a experiência.
Por eras, vagava sozinho. Sem vínculos, sem laços. Até encontrá-la.
Ela era diferente. Uma criança comum aos olhos do mundo, mas para mim, uma presença vibrante e inquietante. Ela não temia meus olhos vazios, nem minha forma imprecisa. Para ela, eu não era uma ameaça, mas um companheiro invisível.
No início, eu a observava de longe: seus passos miúdos, suas descobertas, seus sorrisos carregados de uma melancolia que ela ainda não compreendia. Acompanhei seu crescimento, seus medos, suas frustrações. Aos quatro anos, ela já desenhava a morte de um colega com detalhes perturbadores. Os desenhos eram planejamentos macabros, mas feitos com a ingenuidade de uma mente que ainda brincava com bonecas.
"Halma." Foi assim que ela me chamou. Ela me desenhava como uma figura de traços tortos e olhos leitosos. Eu a intrigava tanto quanto ela me fascinava. Aos olhos dela, eu não era apenas um amigo imaginário — era um cúmplice, um confidente.
Eu alimentava sua raiva e curiosidade sombria. Falava de facas, cordas, possibilidades que faziam seus olhos brilharem. Seus desenhos ficavam mais elaborados, as histórias mais vívidas. Ela planejava com a precisão de um artista meticuloso, mas a inocência da infância a segurava no limiar entre pensamento e ação.
Aos poucos, percebi que minha influência era mais profunda do que eu imaginava. Nas noites insones, quando o barulho do bairro a perturbava e a luz fraca da rua invadia seu quarto, eu me alimentava de seus medos. Puxava-a para um mundo de pesadelos: um domínio meu, onde as sombras eram vivas e o silêncio pulsava como um coração morto.
Lá, ela enfrentava criaturas de formas erráticas, mas nunca fugia. Sempre que seu limite era atingido, corria para os braços da mãe, carregando consigo um pedaço de sua força. Eu me deliciava com a energia dela, com sua resiliência infantil.
Mas havia uma fragilidade que o pai, distante e desdenhoso, não enxergava. Ele a via como uma intrusa, uma competidora do afeto da mãe. Seu desprezo alimentava o rancor da menina, construindo nela uma muralha de mágoa e insegurança. E eu, sorrateiramente, alimentava-me de cada gota desse veneno.
A infância dela era uma dança perigosa entre a doçura e a escuridão. Quando um novo amigo entrou em sua vida — um menino de alma pura e luz ofuscante —, fui empurrado para a margem. Ele era tudo o que eu não era: calor, bondade, esperança.
Eu o odiei.
Passei a rondá-lo, invadindo seus sonhos e instigando sua família disfuncional. Sua mãe, quebrada e frágil, foi fácil de manipular. Aos poucos, destruí a alegria que ele irradiava, tornando-o uma sombra de si mesmo. Quando desapareceu da vida dela, fui tomado por uma satisfação sombria. Mas a luz que ele deixou criou um vazio nela que nem eu podia preencher.
Ela voltou para mim, mas não era a mesma. Algo havia mudado. Seus olhos, embora ainda confiantes, carregavam um cansaço que me perturbava.
— Halma, por que você não me ajuda de verdade? — perguntou uma noite, segurando um desenho onde eu segurava uma faca ao lado de um menino sem rosto.
Sua voz era doce, mas o pedido era um convite ao abismo.
Eu hesitei.
Por que hesitei? Eu, que nunca senti remorso, nunca questionei minha própria natureza? Pela primeira vez, algo em mim tremia diante dela.
E agora, enquanto ela cresce, continuo ao seu lado. Mas há algo diferente. A conexão entre nós tornou-se uma corda tensionada, prestes a romper ou arrebentar causando dor aquele atingido em seu chicote. O que ela espera de mim? E, pior ainda, o que eu realmente quero dela?
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Espero que gostem deste novo conto....
Comentem bastante!
Abraços
VOCÊ ESTÁ LENDO
Halma
Short StoryO que você esperaria ter ou ser? Quando nascemos, somos lançados em uma sociedade, uma família, um molde de ser. Crescemos presos aos estereótipos que nos cercam, raramente questionando por que seguimos tantas regras, por que nos acomodamos em caixa...