Do socialismo utópico ao socialismo científico

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Parte III

A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz o pelo modo de trocar os seus produtos. De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na idéia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu em insensatez e a bênção em praga , isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas formas de distribuição produziram-se silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão de condições econômicas anteriores. E assim já está dito que nas novas relações de produção têm forçosamente que conter-se - mais ou menos desenvolvidos - os meios necessários para pôr termo, aos males descobertos. E esses meios não devem ser tirados da cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobri-los nos fatos materiais da produção, tal e qual a realidade os oferece.

Qual é, nesse aspecto, a posição do socialismo moderno?

A ordem social vigente - verdade reconhecida hoje por quase todo o mundo - é obra das classes dominantes dos tempos modernos, da burguesia. O modo de produção característico da burguesia, ao qual desde Marx se dá o nome de modo capitalista de produção, era incompatível com os privilégios locais e dos estados, como o era com os vínculos impessoais da ordem feudal. A burguesia lançou por terra a ordem feudal e levantou sobre suas ruínas o regime da sociedade burguesa, o império da livre concorrência, da liberdade de domicílio, da igualdade de direitos dos possuidores de mercadorias, e tantas outras maravilhas burguesas. Agora já podia desenvolver-se livremente o modo capitalista de produção. E ao chegarem o vapor e a nova maquinaria ferramenta, transformando a antiga manufatura na grande indústria, as forças produtivas criadas e postas em movimento sob o comando da burguesia desenvolveram-se com uma velocidade inaudita e em proporções até então desconhecidas. Mas, do mesmo modo que em seu tempo a manufatura e o artesanato, que continuava desenvolvendo-se sob sua influência, se chocavam com os entraves feudais das corporações, a grande indústria, ao chegar a um nível de desenvolvimento mais alto, já não cabe no estreito marco em que é contida pelo modo de produção capitalista. As novas forças produtivas transbordam já da forma burguesa em que são exploradas, e esse conflito entre as forças; produtivas e o modo de produção não é precisamente nascido na cabeça do homem - algo assim como o conflito entre o pecado original do homem e a justiça divina - mas tem suas raízes nos fatos, na realidade objetiva, fora de nós, independentemente da vontade ou da atividade dos próprios homens que o provocaram. O socialismo moderno não é mais que o reflexo desse conflito material na consciência, sua projeção ideal nas cabeças, a começar pelas da classe que sofre diretamente suas conseqüências: a classe operária.
Em que consiste esse conflito?

Antes de sobrevir a produção capitalista, isto é, na Idade Média, dominava, com caráter geral, a pequena indústria, baseada na propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção: no campo, a agricultura corria a cargo de pequenos lavradores, livres ou vassalos; nas cidades, a Indústria achava-se em mãos dos artesãos. Os meios de trabalho - a terra, os instrumentos agrícolas, a oficina, as ferramentas - eram meios de trabalho individual, destinados unicamente ao uso individual e, portanto, forçosamente, mesquinhos, diminutos, limitados. Mas isso mesmo levava a que pertencessem, em geral, ao próprio produtor. O papel histórico do modo capitalista de produção e seu portador - a burguesia - consistiu precisamente em concentrar e desenvolver esses dispersos e mesquinhos meios de produção, transformando-os nas poderosas alavancas produtoras dos tempos atuais. Esse processo, que a burguesia vem desenvolvendo desde o século XV e que passa historicamente pelas três etapas da cooperação simples, a manufatura e a grande indústria, é minuciosamente exposto por Marx na seção quarta de O Capital. Mas a burguesia, como fica também demonstrado nessa obra, não podia inverter aqueles; primitivos meios de produção em poderosas Orças produtivas sem transformá-los de meios individuais de produção em meios sociais, só manejáveis por uma coletividade de homens. A roca, o tear manual e o martelo do ferreiro foram substituídos pela máquina de fiar, pelo tear mecânico, pelo martelo movido a vapor; a oficina Individual deu o lugar à fábrica, que impõe a cooperação de centenas e milhares de operários. E, com os meios de produção, transformou-se a própria produção, deixando de ser uma cadeia de atos individuais para converter-se numa cadeia de atos sociais, e os produtos trans. formaram-se de produtos individuais em produtos sociais. O fio, as telas, os artigos de metal que agoira saíam da fábrica eram produto do trabalho coletivo de um grande número de operários, por cujas mãos tinha que passar sucessivamente para sua elaboração. Já ninguém podia dizer: isso foi feito por mim, esse produto é meu.

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