Dona morte veio me visitar; jogava sua presença sútil por sobre meus olhos. Agora, cobertos por uma fina película branca na íris. Catarata. Eu podia ver as chamas, elas me corrompiam com um frio absoluto. O mundo terreno não era mais uma opção pra mim, meu corpo estava entre mundos; entre a luz e escuridão, sem um ponto final entre os dois. O inferno e a terra - de uma coisa sei sobre essa última: muito tem haver a terra com o inferno.
Descobri de maneira simples. Descobri quando parei de temer o demônio. Quando todos os meus pesadelos eram meramente humanos, de carne e osso, reais. Quando a Vilania tem o intrínseco poder de ser ruim, má, diabólica. Quando a natureza humana é realmente maldita.
I
Em algum lugar de São Paulo, 15h45.
A lágrima rolou excedendo os limites da pequena garota de pele alva. E mais uma vez o tempo parara.
Ururu tapava os ouvidos. Um de seus pequenos sapatos vermelhos lhe faltava. O grande vitral havia explodido. O sol fraco, falido. A chuva fraca que inundava o espaço cintilando junto com os flocos de vidro e o sol. O tempo parara, e montara um inexplicável mosaico feito de: choro, vidro, chuva e raios de sol. Tudo parara. As gotas iridescentes esculpidas de forma milagrosa, o mosaico de sol e cristais coloridos; e a musa, sim a musa. Uma garotinha com um pé de sapato vermelho a menos.A mão ainda lhe cobria os ouvidos. O tempo parara, mas não ela. " Você tem um dom", lembrou do Era Uma Vez que sua mãe um dia havia contado, não a muito tempo.
E o sapato lhe faltava. Vermelho. O ouvido ainda tapado pelas mãos pequenas. Vermelho. O tempo não existia, apenas a tela estranha causada por seu feito silencioso de uma fração de segundo atrás. Vermelho.
O sol irradiava atrás de um púlpito. Não, não era um púlpito. Era algo sagrado, sim sagrado. Um altar. Ela sentiu algo carregar um manto negro de tristeza, puxava rédeas e espreitava ela. Aquilo se chamava Violência, pelo menos sua mãe a chamava assim. "Preciso de você, querida", disse em tom suave, mas de voz autoritária e superior. A voz tinha uma cor, pensou Ururu. Uma voz branca. "Eu sou o vermelho", pensou a garota. "Não chores, criança. Você não está a sós ". Percebeu que o grito ainda não se extinguira de sua garganta, aquele grito silencioso.
Mas algo quebrou seu grito. Quebrou o silêncio. Quebrou o tempo. O som de uma nova cor, TAP, TAP, TAP. Essa que não tinha nome, era uma nova cor. Nada que um ser humano podia reproduzir ou pensar. A cor não tinha nome, mas tinha um rosto.
Uma mão se esticou para Ururu, faltava-lhe dois dedos, mas era uma mão forte, na outra o sapatinho vermelho. A cor tinha um rosto e tinha voz:
"Vamos!"
II
O som dos sapatos pretos de Thomas ecoavam no grande salão da igreja. Segurava em sua mão direita um sapatinho vermelho, na mesma mão um terço de contas de madeira jazia pendurado. Seus sapatos resultavam em um som seco: TAP, TAP, TAP. Ele prestava atenção no som dos sapatos, no som de seus passos. Por uma fração de segundo pensou ouvir algo, que o deixou tenso e de nervos rígidos. Não mais se atinha ao som dos sapatos pretos. Gotas cainham sem remorso, como lágrimas de um dono que não as queria. Um tipo de pressão cravou seus passos, tentou andar mais um passo, mas o corpo não o deixava.
Uma presença o vigiava. Sorriu. Sorriu, não porque não sentisse medo. Definitivamente não era isso, suas pernas o trairam afinal. Sorriu por debochar daquele truque que tentava o derrotar. Sorriu pois tinha poder sobre Aquilo.
Mais uma vez apenas seus passos de sapatos pretos eram ouvidos no salão, estendeu a mão para a garota descalça de um par de sapatinho vermelho, que logo estendeu sua mão em troca.
O Sol era bonito aquele dia, porém fraco, pensou Padre Thomas olhando os fracos raios de sol que entravam pelo vitrô quebrado. A chuva parara, o tempo? não mais. O sol alongava a sombra de um padre com uma garota no colo, essa que não chorava mais, agora vestida de um segundo sapato vermelho.
Padre Thomas não mais se concentrava no som de seus passos-de-sapatos-pretos. Sussurou com riso, "Mas que belo dia fará hoje!"
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Compendium
RandomCompêndio - compilação em que se encontra resumido o mais indispensável de um estudo. Thomas é um padre com comportamentos "inaceitáveis" diante a fé e os costumes cristãos/católicos, mas ele tem um dom e a igreja precisa de seus conhecimentos para...