Sussuros

32 2 0
                                    

"O caráter do homem é o seu demônio" - Heráclito

I

"Agarrem ela" disse ele. Dentes amarelados em um sorriso. A neve caía lenta em São Paulo - você precisa saber que de um tempo pra cá o mundo ficou uma merda (uma maior do que já estava). Humanos, não é mesmo?
Para os olhos de Ururu a neve parecia ainda mais lenta; o beco cheirava pessimamente, como qualquer beco deve cheirar. A garota processava tudo de maneira lenta, examinando uma tela recém pintada, pincelada por pincelada. Atinha-se para outros detalhes: o andar irregular do brutamontes do colégio, Nicolas; um ano atrás tinha sofrido um acidente no futebol, ela ouvira que tinha algo haver com a patela e precisaria de cirurgia, pelo jeito o cabeça oca não levou a sério.
Nicolas mantinha o cabelo meticulosamente penteado para trás e aquele cheiro clichê de cigarros e perfume barato "merda de perfume barato", pensou Ururu com desgosto ( para o desgosto de qualquer mulher... não, para o desgosto de qualquer ser humano).
Ele dizia algo enquanto se desvencilhava do cinto. A boca mexia, porém a pressão na cabeça de Ururu fazia com que ela se sentisse debaixo dágua, sem som e fazendo os movimentos passarem devagar e pesados como os passos dele afundando a neve.
Dois dos colegas de classe, Arthur e Renan, seguravam seus braços esticados mantendo seus joelhos no chão. Sua camisa branca estava rasgada, a falta de um sutiã fazia seu seio esquerdo ficar a mostra, arrepiado pelo frio; cabelos bagunçados; o nariz sangrando tingia a camisa branca, o restante da antiga camisa do colégio das Madres.
Percebeu que um dos braços, o direito, estava sendo segurado de maneira desleixada e com a segurança de que nada aconteceria. Ateve- se nisso e fez uma nota mental.

"Levantem a vagabunda! Essa vadia lésbica vai ter o que merece", os "capagangas" obedeceram a ordem num som de "her-her-her", uma tentativa de risada que deixou o estômago da menina embrulhado por um momento, rezou para não vomitar.

Sentiu frio, aquele tranco súbito fez os trapos da sua camisa deixarem o outro seio escapar por debaixo do pano. Um filete de sangue escorreu do nariz para o queixo e gotejou tingindo o branco do chão.
Algo de inexpressiva satisfação passou de relance nos olhos puxados de Ururu, seguidos por: um brutamontes tirando o pau da calça.

Usando os outros dois de apoio deu impulso, encolheu as pernas e desferiu um golpe no peito de Nicolas. Primeiro baque: seus pés em cheio no peito do quase-futuro-estuprador. Segundo baque: o corpo imenso caindo no chão num grunhido abafado. Surpresos, os outros dois permaneceram boquiabertos enquanto Nicolas caía no chão inerte. O braço esquerdo ainda mais frouxo da pegada de Arthur, loiro e mediano. Virou o pulso e se soltou facilmente transformando a mão em uma espécie de garra ou como se estivesse carregando um copo invisível, segundo golpe: Renan o da esquerda recebeu o ataque, seu osso hióide atingido e quebrado, as mãos foram direto para o pescoço num pânico em busca de ar, e o grito abafado pela asfixia. O baque. Segundo corpo no chão. A mão direita, agora livre, se fechou em punho e por três vezes ela golpeou rapidamente Arthur no pomo de adão. Gorfou o sangue e antes do terceiro corpo cair sua expressão já era de cadáver. O baque. Terceiro corpo no chão.

Soltou todo o ar nos pulmões. Sentiu o frio nos seios nús, foi até o corpo de Renan que já parara com os espasmos e o virou, ele era o menor. Retirou o moletom da USP que o rapaz usava e vestiu. A alguns passou ouviu Nicolas resmungar, mas sem forças. Caçou nos bolsos dele o maço de cigarros, conferiu se tinha um esqueiro dentro  e o jogou do lado, não tinha bolsos, estava com a saia do uniforme.
Ela com muita dificuldade conseguiu deixar Nicolas com o peito pra cima, ele ainda não conseguindo se mexer e o pau estava pra fora, resmungando. Daria atenção agora para a perna, sim aquela com o joelho fodido. Ururu segurou a perna de Nicolas apalpou o joelho enquanto olhava ele tentando se mexer, provavelmente as costelas estavam fraturadas, a garota torceu a perna de Nicolas, mas sua força não era o bastante para quebrar o joelho dele. Olhou a sua volta e não viu nada que pudesse usar. Acendeu um dos cigarros do maço que tinha jogado no chão e andou em direção a rua.

Continua...

CompendiumOnde histórias criam vida. Descubra agora