O Guerreiro

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Rio de Janeiro, 10 de Janeiro de 2014

– Olá, aqui é a Alice! No momento não posso atender, mas você já sabe o que fazer após o BIP!

– Amor, sou eu. Me avisa que horas você sai amanhã. Vou te buscar. Beijos! E vê se compra logo um celular novo.

Rio de Janeiro, 11 de Janeiro de 2014

– Amor, o que houve? Você não me ligou, então resolvi ir mesmo assim. Fiquei horas plantado lá, mas não te vi. Perguntei e disseram que você não estava lá. Queria falar com você. Ontem aconteceram coisas estranhas. Eu vi um homem estranho de roupa preta no acostamento e podia jurar que ele me chamou. Consegui ver os lábios dele formando meu nome. Quando cheguei em casa, minha banheira estava cheia, mas a torneira estava desligada e eu não me lembro de ter enchido. Me liga, quando chegar.

Rio de Janeiro, 12 de Janeiro de 2014

– Estive o dia todo na rua e não consegui passar na tua casa. Já são 2h da manhã. Caso você esteja ouvindo, fala comigo, só cinco minutos antes de ir dormir. Se não, me liga amanhã depois do trabalho. Estou preocupado com você. Estranho, tem alguém me chamando na porta, deve ser o sindico. Amanhã nos falamos.

Rio de Janeiro, 13 de Janeiro de 2014

– Alice, aconteceu algo estranho ontem. Eu fui atender a porta naquela hora e não tinha ninguém. Olhei duas vezes para cada lado do corredor, dei alguns passos para fora só para ter certeza. Voltando para o apartamento eu me sentei no sofá e fui assistir um filme antes de dormir. De repente fui atacado, alguém tentava me sufocar...foi terrível...Amor, eu estava desesperado, não fazia ideia do que estava acontecendo. Seria um assaltante, um assassino? Lutei com todas as minhas forças. Virei o sofá enquanto me debatia e pude ver quem era...meu vizinho, senhor Bastos. Se lembra de quando lhe contei sobre meu vizinho que ouvia Roberto Carlos no último volume aos domingos? Que jogava xadrez na praça com seus amigos da terceira idade? Então, aquele senhor inofensivo estava atrás de mim. Com os olhos, os olhos, não pareciam os olhos dele. Ele queria me matar. Ele continuou tentando, me chutando, tentando agarrar meu pescoço novamente. Eu tateei o piso, procurei algo para me defender. Achei o abajur, reuni forças e o golpeei com força bem do lado da testa. Ele ficou zonzo e comecei a bater repetidas vezes até que ele saísse de cima de mim. Tinha muito sangue em mim...Ele estava morto. Quando peguei o telefone para ligar em desespero, eu senti aquele poder, aquela chama que você me falou. Eu sabia que poderia resolver aquilo sem me prejudicar, sem envolver a polícia. Fiz algumas evocações, tratei com alguns Deles e tudo deu certo. Eles me explicaram o que estava acontecendo, sobre as possessões. Me ajudaram sobre o que fazer com o corpo até. Disseram que vai piorar, que isso foi só o começo...

Rio de Janeiro, 16 de Fevereiro de 2014

– Querida, estive ocupado esses dias. Me desculpe duvidar de você. Está tudo acontecendo como você me falava. Eles estão entre nós, ocupando as mentes mais fracas. Já me deparei com eles. Matei alguns deles e aprisionei os malditos nos potes que eu mesmo fiz. Graças a tudo que me ensinou estou conseguindo ajudar, proteger nossa raça contra esses imundos. Você ficará orgulhosa de mim. Quando vier aqui vou lhe mostrar tudo.

Rio de Janeiro, 19 de Fevereiro de 2014

– Descobri algo importante hoje. Alguns deles são tão poderosos que conseguem manipular a aura do simulacro para alterar sua forma. Criam asas, garras, chifres e toda a sorte de deformações abomináveis. Não fosse o auxílio dos Reis, eu estaria morto agora. Combati um ser horrendo, cheio de escamas, com uma língua bifurcada e moscas, muitas moscas o cercando. Quando elas encostavam em mim, queimavam como ferro quente. A dor daquilo só era superada pelo asco de lutar com tal criatura pútrida e decrepita. O cheiro era insuportável e o lodo que a cobria respigava por todos os lados. Fui obrigado a queimar minhas vestes. A matei de forma selvagem, colocando meus dedos em seus olhos até sentir que eles vazavam pelas laterais. Senti um prazer enorme naquilo, mas não me culpo por isso. Estou salvando vidas. Cada infeliz desse que aprisiono, são vários irmãos que estão a salvo. Lavei o corpo, analisei as mudanças causadas pela possessão e depois fiz um ritual queimando o corpo numa lixeira aqui perto de casa. Não se preocupe, fiz o ritual de ocultação, não acharão vestígios que os tragam até mim. Tudo pela glória da Rainha. Mal posso esperar pelo dia em que serei agraciado por ela.

Rio de Janeiro, 25 de Fevereiro de 2014

– As ruas estão cheias deles. Ontem consegui trazer uma possuída para minha casa. Ela esperava conseguir me submeter sexualmente. Mordi a isca e a trouxe para cá. Se apresentou dócil e meiga. Se fingia carente, representando um papel de recém-divorciada. O simulacro era perfeito. Loira, quase dois metros de altura, corpo em forma. Mas eu conseguia ver toda desgraça que se escondia sob o simulacro, eu conseguia ver além do corpo humano. Uma criatura abominável, com olhos felinos, dentes que se assemelhavam a agulhas encravadas em suas gengivas e orifícios, por onde saiam galhos de madeira, espalhados por todo corpo. Deixei que a criatura ficasse à vontade, a levei até meu quarto e quando baixou sua guarda, eu a golpeei com minha espada. Foi um único golpe, certeiro no pescoço. Aquele sangue fétido espirrou por todo ambiente. Chamei um dos Reis e fiz os procedimentos. O ritual foi árduo e demorado, pois a criatura era poderosa e difícil de ser aprisionada. Mas no fim, tudo deu certo.

Rio de Janeiro, 03 de Março de 2014

– Hoje eu descobri uma família inteira possuída por eles. Eu estive observando eles por dois dias. Mantinham uma rotina bem simples. Após a vigília, eu separei minhas armas invoquei os Reis e eles vieram ao meu auxilio. Foi fácil entrar na casa. Graças aos meus preparativos ritualísticos, eles foram pegos completamente de surpresa. Não eram muito poderosos. Ao todo eram cinco, o pai, a mãe, duas crianças e um velho. Se faziam passar por uma família integra e tradicional. Os menores possuíam simulacros de uns dez a doze anos, aproximadamente. Incrível o trabalho teatral deles pedindo, implorando por suas vidas. Se não estivesse focado e soubesse exatamente o que eram, eu teria vacilado. Depois de ter executado seus simulacros e aprisionado sua essência, eu resolvi por fogo na casa. Havia muito deles ali. A energia estava impregnada e apenas o fogo podia destruir os vestígios e purificar o lugar. Devo confessar que a visão do local em chamas foi impressionante. Cheguei a ficar extasiado com aquilo, provável que pelo senso do dever cumprido.

Rio de Janeiro, 07 de Março de 2014

– Amor, acho que superei todas as minhas fraquezas. Dei fim a uma gestação macabra. Infelizmente para isso, fui obrigado a dar fim a uma vida inocente. A mãe estava livre da possessão, mas o feto estava corrompido e acumulando energia. A conheci no metrô e puxei assunto. Pelo visto a criatura é semelhante a um feto humano, pois não ofereceu resistência alguma, nem mesmo tentando alguma manipulação psíquica na gestante. Foi ao mesmo tempo a demanda mais fácil e mais difícil das que fiz até hoje. Me senti um pouco mal na hora, afinal de contas era uma mulher inocente e gravida, mas depois eu pensei em todo bem que estou fazendo e dormi em paz. Certamente eles já estão trabalhando para a criação de uma geração inteira dessas coisas. Não posso deixar que isso continue sem nada fazer, mesmo que isso custe ter sangue inocente em minhas mãos. Não como travar uma guerra sem vitimar inocentes. Minha consciência permanece tranquila, apenas pelo fato de tudo isso estar sendo visto pela Rainha. Ela me julgará e sua justiça é incontestável. Não a ser mais justo do que Ela.

Rio de Janeiro, 20 de Março de 2014

– A polícia está atrás de mim, por conta do que tenho feito. Não sabem ainda minha identidade, mas mesmo que descubram, não me pegarão. Invoquei os Reis e eles estão encobrindo meu rastro. Não sei o que Ela quer de mim, mas até que eu cumpra meu dever permanecerei incólume, tenho certeza disso. Tudo vai dar certo.

Rio de Janeiro, 30 de Março de 2014

– Eu tive uma visão essa noite e fiquei muito preocupado. Como eu já suspeitava existem diversas crianças possuídas por eles. E como sabemos a possessão é definitiva, eu temo pelo que terei de fazer. Mas preciso aceitar que elas não são mais crianças. Nem mesmo humanos elas são. Irei até lá e cobrarei a dívida em nome da Rainha. Cada pequena vida que foi ceifada por esses monstros será vingada a fogo e sangue. Tenho a sensação de que esse será meu último desafio, minha última missão. Estou cada vez mais próximo Dela e creio que agora, Ela vai me desafiar pela última vez.

O Conto dos TrêsOnde histórias criam vida. Descubra agora