O Vigia

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Eram quatro da manhã de sexta quando o Capitão Alberto Medeiros, gozando de suas férias vencidas a dois anos, percebe que precisa comprar mais bebida. Sua garrafa de uísque, vazia, estava aberta sobre a mesa. Também estavam lá, algumas pastas jogadas com fotos de corpos mutilados, carbonizados, assassinados de variadas formas. Em algumas pastas haviam textos enormes, depoimentos, processos, atestados. Definitivamente não parecia a escrivaninha de alguém que está de férias. As marcas do seu copo estavam presentes em vários pontos da velha madeira. Ele já não se lembrava de que horas havia começado a beber, mas aquela já era a segunda garrafa vazia e ele não via meios de fugir da terceira. Não depois daquela visita. Fica difícil segurar o copo com o tremor em suas mãos ao lembrar do episódio. A figura sombria de dedos esqueléticos havia lhe ameaçado a ponto de o deixar com um medo que jamais imaginou ser possível sentir. Aquilo com certeza não era humano. Alberto, que era batizado na igreja católica, nunca foi devoto de nenhum santo e nem acreditava em nada daquilo que seus não podiam ver ou suas mãos tocarem. Hoje ele se via completamente perdido. Ele não conseguia tirar aquele caso da cabeça e agora que havia chegado perto, acabou incomodando quem não deveria. Ele tinha quase três metros de altura, tanto que permaneceu durante todo tempo curvado no quarto com sua cabeça tocando o teto. Seus membros superiores eram compridos e terminavam em mãos ressecadas e esqueléticas com uma tonalidade que aparentava barro vermelho. Ele usava um traje verde e velho, com capuz e um arco nas costas. Seu rosto era impossível ver sob o capuz. Falava arrastado e de maneira estridente. Era como se estivesse arranhando um vidro para falar. A ameaça a Alberto e sua família foi declarada e como forma de atestar seu poder, a criatura chamou, uma única vez o cão da família. Quando este prontamente veio lhe atender, o Arqueiro lhe tocou uma única vez no topo de sua cabeça. O que aconteceu depois daquilo foi digno de um show de horrores. O cão começou a apodrecer como um cadáver em questão de minutos, que pelo terror do ato, pareceram horas. Os pelos do animal caiam em tufos e sua pele parecia bolor. Sua vista cegou, ele girava em círculos visivelmente em sofrimento, mas sem esboçar um único som, como se estivesse proibido de tal pela criatura. Vermes saiam de buracos pela pele e entravam na mesma velocidade devorando sua carne com um apetite voraz. Depois de alguns minutos de dor, ele fraquejava sobre as quatro patas e já não conseguia se mover. Daí para frente foi apenas acompanhar a alimentação medonha dos vermes sobre a pele, seguida de gordura, músculos e resquícios nos ossos. O chão ainda fedia a vomito. Alberto perdeu totalmente o controle do próprio corpo naquele momento vomitando por todo piso e urinando em si mesmo. Ele não fazia ideia do real poder do medo até aquele dia. O Arqueiro se moveu em direção a porta e olhou uma última vez para ele. Se Alberto não estivesse muito atemorizado para ter certeza de qualquer coisa, poderia jurar que a criatura sorriu em meio a escuridão do velho capuz. Alberto deixa o ar frio da varanda e volta para dentro do quarto onde pega em mãos a carta escrita por ele mesmo a um ano atrás sobre a escrivaninha.

"Rio de Janeiro, 27 de Setembro de 2014

Eram duas da tarde, do dia 10 de Abril, quando prendemos ele. Em todos esses vinte anos na corporação, nunca havia visto nada do gênero. Estava acostumado a lidar com assassinos de ocasião, de aluguel, passionais, em série. Mas nada do que vi em minha carreira se parecia com isso. Aquilo mais parecia caso de filme. Colhemos o depoimento dele. Mais de oito horas ouvindo aquele sujeito relatando, com detalhes, cada uma de suas atrocidades e como ele estava apenas cumprindo sua "missão" para a tal Rainha. Era doentio o modo como ele se referia a ela. Uma espécie de adoração cega e fanática. Ele mencionava criaturas com poderes extraordinários, que possuíam as pessoas e tinham um plano de infiltração em massa em andamento. Depois de uma minuciosa investigação, descobrimos tudo sobre ele. Sua infância, suas atividades, seus hobbies, seus poucos amigos, a maioria deles somente na infância. Sua juventude e maioridade foram marcadas por perdas familiares e um isolamento perturbador. Não havia ninguém que mantivesse contato com ele fora da faculdade. Ele não tinha amigos por lá, somente colegas de classe. Ninguém sabia onde ele morava e ele nunca participava das festividades comuns da faculdade, regadas a álcool e música ruim. A única referência que tínhamos de algum contato humano que ele pudesse ter, era de uma das professoras do curso, Alice Delaria. Ela era citada em diversas anotações dele como uma espécie de professora particular dele em algum estudo macabro que envolvia a tal Rainha. Pelas anotações e tudo que coletamos lá, ela seria a pessoa que o introduziu a esse culto. Era professora de História na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, mesma instituição onde Marcos, o réu, estudava. Ela era muito bonita. Tinha cabelos ruivos naturais, pele clara, olhos verdes profundos e um sorriso que poderia convencer até o diabo. Eu até hoje não entendo o envolvimento dela nessa história toda, mas sei que existe algo que, com muita tristeza digo, nunca irei descobrir. Minha esperança eram as inúmeras ligações que haviam dele para ela, nunca o contrário, porém essas mensagens deixadas na secretária dela, nunca foram encontradas. Tentei encontrar alguma forma de arrancar algo dela, mas ela era tão bela quanto escorregadia. Durante todo o depoimento alegou que Marcos havia criado uma doentia obsessão por ela, e sem provas do contrário, todos os fatos apontavam para aquilo. Esse segredo, ela levará para o túmulo. Nunca tinha visto tantos repórteres, cinegrafistas, manifestantes e curiosos num mesmo lugar como o dia em que ele foi preso. Posso dizer com certeza que nunca um caso no Rio de Janeiro repercutiu tanto como aquele. Quando apareci na entrada, fui aplaudido. Não me senti nem um milímetro melhor com aquela homenagem. Depois do incidente na escola, com todas aquelas crianças brutalmente assassinadas, eu me sentia o pior dos homens. Incapaz, impotente, inútil perante aqueles pais. Eles vieram até mim, alguns deles, e me deram uma caríssima cesta de café da manhã, uma camiseta com o logo do movimento criado na época e uma moldura com um mosaico de fotos das vítimas. Aquela moldura me assusta todos os dias, aquele caso me marcou para sempre. Se existe algo que pode ferrar com a mente de um homem é vislumbrar o quão insano um humano pode ser.

Alberto Medeiros"

Ele coloca o manuscrito sobre a mesa e olha para todas aquelas provas e documentos. Ela estava perto, a um passo talvez, de descobrir o segredo por trás daquele caso, no entanto de uma coisa ele já sabia, com o tipo de coisa com que estava mexendo. No canto da mesa, havia um porta-retratos com a foto de suas filhas, Sara de 27 anos e Ester de 20. Seu olhar sai do retrato de suas filhas sorrindo, felizes e recai sobre o local onde, horas antes, haviam os restos pútridos do cão da família. Como vítima de uma súbita epifania ele começa a recolher todos os papeis que estão sobre a mesa, coloca em sacolas pretas e leva até o quintal. Não demora muito para que tudo vire cinzas, todas as provas e pistas sobre o caso se tornaram pó. Ele entra, senta no sofá e começa a assistir TV. A luz vinda da parte externa da casa desperta Alberto. Ainda com os olhos embaçados e o corpo entorpecido pelo sono, ele vê que já passa do meio dia. Ele se ajoelha em frente ao sofá e começa uma tímida oração. Após aquele gesto de fé incomum, ele toma um banho e vai até a praia, passa praticamente o resto da tarde olhando o mar, com semblante aflito, como se procurasse uma resposta, até uma ajuda talvez. A região onde sua casa ficava era bem no fim da praia e isso lhe dava uma privacidade muito cômoda para fugir do estresse da rotina policial. O dia passa e ele volta para casa. Chegando em casa, ele separa um terno de qualidade, vai até o banheiro, toma um banho demorado, faz a barba e se arruma. Antes de sair ele olha a foto de suas filhas, beija o porta-retratos e sai. Retornando a praia, ele vê o Arqueiro. A criatura estava de pé na areia e apesar de ser impossível ver seu rosto, Alberto sabia que a criatura lhe olhava. Ele vai lentamente cruzando toda faixa de areia, sabendo exatamente o que deveria fazer. Sentia um misto de coragem e tristeza, sabendo que aquilo era necessário, que aquilo era o preço a ser pago. Ele passou pelo Arqueiro sem sequer lhe dirigir o olhar. Seu maior esforço era não pensar em Sara e Ester, e como elas iriam se sentir. Alberto sente o frio das primeiras ondas e continua adentrando em direção ao mar aberto. Já bem longe da praia, ele começa a sentir os efeitos dos remédios. Seu corpo lutava instintivamente contra o ato, mas era em vão. Em meio ao torpor e ao frio, Alberto olha uma última vez para o céu e se pergunta porque Deus permitia aquilo...Como todas as perguntas que ele já havia feito para o céu, durante toda a vida, a resposta foi o mais completo silencio.

O Conto dos TrêsOnde histórias criam vida. Descubra agora