Sem forma e cor

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Um grito me chega aos ouvidos chamando meu nome enquanto olho ao redor. Suor escorre da minha testa mesmo sendo noite. Se não fosse pelo fino traço de luz curvado em um sorriso no céu, a noite estaria um breu total. Sob o fraco luar, percebo que estou no meio de uma pista sem carros à vista. De ambos os lados árvores se espreitam como se quisessem observar minha silhueta parada no meio do nada. Aos poucos reconstruo na memória a cena terrível da morte dos meus pais neste mesmo lugar, há cinco anos. Eu tinha doze anos de idade quando tudo aconteceu, quando um trágico acidente de carro levou meu alicerce. Fecho os olhos com a dor da lembrança. Ao abri-los, a sombra está lá. A mesma que desde quando consigo lembrar, segue-me de perto como alguém invisível. Às vezes, quando fecho os olhos, juro que quase posso ver seu rosto, mas logo tudo não passa de um borrão como uma paisagem que salta aos olhos num carro em alta velocidade.

A figura sem forma e cor se aproxima a passos lentos. Meu instinto me diz para correr, mas não consigo me mover. Estou petrificada, e sou tomada pelo medo quando a sensação de familiaridade percorre meu corpo. A lua se esconde lentamente por trás das nuvens, como se também temesse olhá-la. Gritos distantes preenchem o ar enquanto tento lembrar-me de onde a conheço.

O suor da testa escorre por meu pescoço e segue por todo meu corpo traçando uma linha fina. Olho a sombra, que agora está a menos de um metro de distância, como se meus olhos pudessem penetrar aquela escuridão infinda. A cena do velório dos meus pais surge como um soco em minha mente. Rostos vermelhos pelas lágrimas e corpos vestidos de preto preenchem o ambiente enquanto um véu negro  é estendido sobre nossas cabeças. Então eu percebi que a presença se tornou mais forte a partir de então e não houve um momento em que andasse que não a sentisse colada em mim. Não como uma ameaça, tampouco como uma proteção, simplesmente como alguém que observava meus passos atentamente.

Um grito se forma em minha garganta com a dor do reconhecimento. Levo a mão à testa e percebo que não é suor que me escorre, mas sangue. Lágrimas saltam de meus olhos e uma dor latente toma meu corpo. Sinto na pele o toque da aproximação da sombra, como um vento me envolvendo por completo, exigindo cada parte minha. E, como num sono profundo, me deixo levar nos braços da escuridão, que me acolhe como uma mãe a um recém-nascido.


Como alguém invisívelOnde histórias criam vida. Descubra agora