O preço

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Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela. Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclamada a rainha dos salões. Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade. - Bem; resumiu o velho. Não são negócios que se resolvem assim de palpite. O Sr. Seixas pensará, e se como eu espero decidir-se, me fará o favor de prevenir. Vou deixar-lhe minha morada... - Agradeço, mas para esse objeto é inútil, observou Seixas. - Ninguém sabe o que pode acontecer! O velho escreveu a lápis a rua e o número de sua casa numa folha da carteira que deixou sobre o consolo. Meia hora depois, Seixas descia a Rua do Ouvidor em busca do hotel de Europa, onde ia almoçar à fidalga, pela volta do meio-dia. De caminho encontrava os camaradas e conhecidos que o fes-tejavam, pedindo-lhe novas da viagem e dando-lhe as mais frescas da Corte. Entre estas figurava a aparição de Aurélia Camargo, que datava de meses, mas era ainda o grande sucesso do mundo fluminense. Havia nessa noite teatro lírico. Cantava Lagrange no Rigoletto. Seixas, depois de um exílio de oito meses, não podia faltar ao espetáculo. Às oito horas em ponto, com o fino binóculo de marfim na mão esquerda calçada por macia luva de pelica cinzenta, e o elegante sobretudo no braço, subia as escadas do lado do mar. No patamar encontrou Alfredo Moreira com quem de véspera apenas falara de relance no Cassino. - Ontem não sei onde te meteste, Seixas, cansei de procurar-te! - Pois andava bem perto de ti. É que estavas ontem muito encandeado; respondeu Fernando a sorrir. - É verdade! Que mulher, Seixas! Não imaginas. Olhas de longe e vês um anjo de beleza, que te fascina e arrasta a seus pés, ébrio de amor. Quando lhe tocas, não achas senão uma moeda, sob aquele esplendor. Ela não fala; tine como o ouro. Era para apresentar-te que eu te procurei. Ei-la que chega! Esta última exclamação, Alfredo soltou-a avistando um carro que nesse momento parara à porta. Efetivamente dele saltou Aurélia, que se dirigiu acompanhada de D. Firmina a seu camarote na segunda ordem. Envolvia-a desde a cabeça até aos pés um finíssimo e amplo manto de alva caxemira, que apenas descobria-lhe o fino rosto à sombra do capuz, e uma orla do vestido azul. Era preciso ter a suprema elegância de Aurélia para dentre esse envolto singelo e fofo, desatar o garbo de um talhe encantador. Ela parou justo em frente dos dous moços, voltando-lhes as costas, à espera de D. Firmina, que se demorara em descer do carro. - Não é uma beleza? perguntou Moreira ao camarada, em tom de ser ouvido. - Deslumbrante! Respondeu Seixas; mas para mim é uma beleza de espectro! - Não entendo! - É a imagem de uma mulher a quem amei, e que morreu. Esta semelhança me repele! Aurélia ficou impassível. Moreira que se adiantara para cortejá-la pensou que o amigo tinha razão. Efetivamente havia alguma cousa de fantástico, naquela fronte lívida e cintilante. D. Firmina se aproximara. A moça retribuindo com um afável cortejo ao cumprimento do Alfredo, passou como se não se apercebesse de Fernando, e subiu à segunda ordem. VIII Lemos voltara satisfeito com o resultado da sua exploração. Era o velho um espírito otimista, mas à sua maneira, confia-va no instinto infalível de que a natureza dotou o bípede social para farejar seu interesse e descobri-lo. Tinha pois como impossível que um moço, em seu perfeito juízo, dirigido por conselho de homem experiente, repelisse a fortuna que de repente lhe entrava pela porta da casa, e casa da Rua do Hospício a sessenta mil-réis mensais, para tomá-lo pelo braço e conduzi-lo de carruagem, recostado em fofas almofadas, a um palácio nas Laranjeiras. Sabia Lemos que os escritores para arranjarem lances dramáticos e quadros de romance, caluniavam a espécie humana atribuindo-lhe estultices desse jaez; mas na vida real não admitia a possibilidade de semelhantes fatos. - "Não se recusam cem contos de réis", pensava ele, sem uma razão sólida, uma razão prática. O Seixas não a tem; pois não considero como tal essas palavras ocas de tráfico e mercado, que não passam de um disparate. Queria que me dissessem os senhores moralistas o que é esta vida senão uma quitanda? Desde que nasce um pobre-diabo até que o leve a breca não faz outra cousa senão comprar e vender? Para nascer é preciso dinheiro, e para morrer ainda mais dinheiro. Os ricos alugam os seus capitais; os pobres alugam-se a si, enquanto não se vendem de uma vez, salvo o direito do estelionato. Assim, convencido de que Seixas não tinha o que ele chamava uma razão sólida para rejeitar o casamento proposto, não vira Lemos na primeira recusa senão um disfarce, ou talvez o impulso dessa tímida resistência, que os escrúpulos costumam opor à tentação. Esperava, pois, pela salutar revolução que dentro de poucos dias se devia operar nas idéias do mancebo. Ao sair da casa de Seixas, Lemos dirigiu-se à casa do Amaral, onde entabulou uma negociação que devia assegurar o êxito da primeira. Desenganado o moço da Adelaide e dos trinta contos, não tinha remédio senão aceitar a consolação dos cem; consolação que levaria o pico de uma vingançazinha. Não sei como pensarão da fisiologia social de Lemos; a verdade é que o velhinho não mostrou grande surpresa quando uma bela manhã veio dizer-lhe seu agente que o procurava um moço de nome Seixas. Esse agente chamava-se Antônio Joaquim Ramos, e era o mesmo de quem o velho tomara emprestado o nome. Estava prevenido pelo patrão desta circunstância que não o surpreendia, pois era jubilado em tais alicantinas. - Que espere! gritou o velho. Tinha Lemos na loja da casa de morada uma cousa chamada escritório de agências. Era um corredor que dava porta para a rua e estendia-se até à área do fundo, onde o velho trabalhava dentro de uma espécie de gaiola, feita de tabique de madeira com balaústres. Fora daí que respondera. Era seu costume sempre que ia tratar de negócio importante, ruminá-lo de antemão para não ser tomado de improviso. Foi o que fez nesse momento. - De que disposições virá o sujeito? Quererá sondar-me a respeito da noiva, desconfiado de que lhe pretendo impingir alguma carcaça? Ah! ah! por este lado não há perigo. Terá intenção de regatear? A menina não se importa de chegar até aos duzentos e aposto que se for preciso vai por aí fora, que isso de mulher, o dinheiro faz-lhe cócegas. Mas eu é que não estou pelos autos! Seguro-me nos cem, que daí não me arrancam. Quando muito uns vinte de quebra, para o enxoval e nem mais um real! Tendo feito seus cálculos, Lemos chegou à porta do cubí-culo e gritou para a frente do armazém: - Mande entrar! Quando Seixas chegou ao escritório, já Lemos estava de novo trepado no mocho, e debruçado à carteira continuava a despachar seus negócios. Sem erguer a cabeça fez com a mão esquerda um gesto ao moço indicando-lhe o sofá. - Queira sentar-se; já lhe falo. Terminada a carta, e enxuta com o mata-borrão, Lemos fechou-a na competente capa; pôs-lhe sobrescrito, e só então girando sobre o mocho, como uma figurinha de catavento, apresentou a frente ao moço. - O senhor deseja falar-me? perguntou. - Já se não recorda de mim? perguntou Seixas inquieto. - Tenho uma lembrança vaga. O senhor não me é de todo estranho! - Não há três dias estivemos juntos, tornou Seixas; é verdade que pela primeira vez. - Há três dias?... E Lemos fez semblante de recordar-se. Desde que entrara, Seixas mostrara em sua fisionomia, como em suas maneiras, um constrangimento que não era natural ao seu caráter. Parecia lutar contra uma força interior que o demovia da resolução tomada; mas se não podia subtrair-se a esses rebates, dominava-se bastante para subjugá-los à necessidade. O esquecimento de Lemos porém veio abalar aquela firmeza momentânea; no semblante do moço pintou-se imediatamente a vacilação do espírito. Não escapou essa alteração ao velho que, recostando-se na cadeira a jeito de olhar o seu interlocutor de meio perfil, se desfez em exclamações de surpresa: - Ora!... O Sr. Seixas!... O meu amigo desculpe!... Isto de negociantes... O senhor deve saber!... Temos a memória na carteira ou no borrador. São tantas as cousas de que nos ocupamos, que realmente só uma cabeça de duzentas folhas, como esta, pode chegar para tanto! O velho soltou uma risadinha cacofônica e apontou para um livro mercantil colocado sobre a carteira. - Aqui está a minha, rubricada pelo tribunal do comércio e competentemente selada, com todas as formalidades legais. Ah! ah! ah!... Então, meu amigo, que manda a seu serviço? - O Sr. Ramos mantém a proposta que me fez anteontem em minha casa? perguntou Seixas. Lemos fingiu que refletia. - Um dote de cem contos no ato do casamento, é isto? - Resta-me conhecer a pessoa. - Ah! Este ponto, parece-me que deixei-o bem claro. Não tenho autorização para declarar, senão depois de fechado nosso contrato. - O senhor nada me disse a este respeito. - Estava subentendido. - Qual a razão deste mistério? Faz suspeitar algum defeito; observou Fernando. - Garanto-lhe que não; se o enganar, o senhor está desobrigado. - Ao menos pode dar-me algumas informações? - Todas. Seixas dirigiu ao velho uma série de interrogações acerca da idade, educação, nascimento e outras circunstâncias que lhe interessavam. As respostas não podiam ser mais favoráveis. - Aceito, concluiu o moço. - Muito bem. - Aceito; mas com uma condição. - Sendo razoável. - Preciso de vinte contos até amanhã sem falta. O velho saltou na cadeira. Este caso o apanhava de sur-presa: - Meu amigo, se dependesse de mim... Mas o senhor sabe que neste negócio eu sou apenas um procurador oficioso. Não tenho ordem para adiantar a menor quantia. Quanto ao dote, depois de realizado o casamento, este sim, garanto. - Não pode emprestar-me sobre essa garantia? Ao Lemos escapou uma careta que ele procurou disfarçar. - Tem razão; observou Seixas sem alterar-se. V. S.ª não me conhece, Sr. Ramos; e a posição em que me coloquei dando este passo, não é própria decerto para inspirar confiança. - Não é isso, homem, acudiu o velho ainda um tanto atrapalhado; mas é que há viver e morrer. - Desculpe-me o incômodo que lhe dei, tornou o moço fazendo um cumprimento de despedida. O negociante estava tão atarantado e perplexo que não correspondeu à cortesia de Seixas, e o viu sair do escritório, indeciso sobre o que havia de fazer. - Para que diabo quererá este marreco os vinte contos? Aposto que anda aqui volta do Alcazar. O rapaz está caído por alguma das tais francesinhas; e elas que são umas jibóias!... Finas como um alhambre, mas capazes de engolir um homem!... Que dirá a isso a senhora minha pupila? Estará disposta a correr todos os riscos e perigos da transação? Neste ponto de seu monólogo, o velho recobrando sua petulante agilidade, deu uma corrida à porta do armazém, onde ainda chegou a tempo de avistar o moço, que afastava-se a passos lentos, pensativo e de cabeça baixa. - Oh! Sr. Seixas!... Faz favor! O negociante adiantara-se alguns passos na rua para ir ao encontro do moço. - É só uma pergunta! foi logo dizendo o velho para não incutir vã esperança. Se recebesse os vintes contos, ficava fechado de uma vez o nosso ajuste? - Sem dúvida! Já o declarei. - Não tínhamos mais objeção de qualquer espécie, nem essas patranhas de honra e dignidade com que andam por aí uns certos sujeitos a embaçar os outros. Negócio decidido, sem olhar à fazenda, quero dizer, à pequena? - Sendo ela como o senhor assegurou... - Está visto! Escute, não prometo nada; mas espere-me amanhã em sua casa, que eu lá estarei por volta das nove. Lemos aviou uns negocinhos; muniu-se de uma folha de papel selado de vinte mil-réis; e depois de jantar deu um pulo às Laranjeiras. Aurélia estava lendo na sala de conversa; mas o estilo de George Sand não conseguia nesse momento cativar-lhe o espírito que às vezes batia as asas, e lá se ia borboleteando pelo azul de uma sesta amena. Quando lhe anunciaram o Lemos, ela sobressaltou-se; e o tremor que agitou as róseas asas da narina, revelou a comoção interior: - Uma pequena dificuldade que ocorreu naquele nosso negócio, é o que me traz. - Qual foi? - O Seixas... - Já lhe pedi que não pronuncie este nome; disse a moça com um modo austero. - É verdade! Desculpe-me, Aurélia, a precipitação... Ele exige vinte contos de réis à vista, até amanhã, sem o que não aceita. - Pague-os! A moça proferiu esta palavra com aquele timbre sibilante que em certas ocasiões tomava sua voz, e que parecia o ranger do diamante no vidro. Cobrira-se-lhe o semblante de uma palidez mortal; e por momentos parecia que a vida tinha abandonado aquele formoso vulto, congelado em uma estátua de mármore. Não percebeu Lemos esse profundo confrangimento, atrapalhado como estava a tirar do bolso uma das folhas de papel selado que estendeu sobre a mesa, alisando-a com as palmas das mãos. Depois, molhando a pena, apresentou-a à moça: - Uma ordenzinha! Aurélia sentou-se à mesa e traçou com uma letra miúda de talhe oblíquo algumas linhas. - Para que pede ele este dinheiro? perguntou a menina enquanto escrevia. - Não me quis dizer; mas eu suspeito; e tratando-se de uma união, de que depende o seu futuro, Aurélia, não devo ocultar cousa alguma. - É um favor, que lhe agradeço. - Não tenho certeza; mas desconfio que é uma rapaziada. O nosso José Clemente fez um palácio para guardar os doudos; mas vieram os meus francesinhos e inventaram o tal Alcazar, que é uma casa de fazer doudos; de modo que já eles não cabem na Praia Vermelha. Aurélia mordia a extremidade da caneta, cujo marfim escurecia entre os dous rocais de seus dentes de pérola. - Não importa? E assinou a ordem. No dia seguinte à hora aprazada estava o Lemos em casa de Seixas. - O senhor é um rapaz feliz. Aqui lhe trago a bolada. O negociante tirou do bolso a segunda folha de papel se-lado. - Temos que passar primeiro um recibozinho. - Em que termos? Depois de uma pequena discussão em que os escrúpulos de Seixas relutaram contra a imposição da necessidade, assinou o moço contrariado esta declaração: "Recebi do Ilmo. Sr. Antônio Joaquim Ramos a quantia de vinte contos de réis como avanço do dote de cem contos pelo qual me obrigo a casar no prazo de três meses com a senhora que me for indicada pelo mesmo Sr. Ramos; e para garantia empenho minha pessoa e minha honra." Depois de verificar que o recibo estava em regra, Lemos contou com a destreza de um cambista o maço de notas que trazia e o entregou ao moço recolhendo uma das cédulas: - Dezenove contos novecentos e oitenta mil-réis... com vinte de selo... Seixas recebeu o dinheiro com tristeza. - Maganão feliz!... Soltando a sua implicante risadinha, Lemos fez duas piruetas, deu três saltinhos, beliscou a coxa de seu interlocutor e desceu a escada como uma bola de borracha aos ricochetes. IX Seixas era homem honesto; mas ao atrito da secretaria e ao calor das salas, sua honestidade havia tomado essa têmpera flexível de cera que se molda às fantasias da vaidade e aos reclamos da ambição. Era incapaz de apropriar-se do alheio, ou de praticar um abuso de confiança; mas professava a moral fácil e cômoda, tão cultivada atualmente em nossa sociedade. Segundo essa doutrina, tudo é permitido em matéria de amor; e o interesse próprio tem plena liberdade, desde que transija com a lei e evite o escândalo. No dia seguinte à visita de Lemos, logo pela manhã, D. Camila procurou um pretexto para ir à alcova do filho. - Venho falar-te de um negócio de família, Fernandinho. Há um moço, aqui mesmo desta rua, que tem paixão pela Nicota. Está começando sua vida; mas já é dono de uma lojinha. Não quis decidir nada antes de tua chegada. D. Camila contou então ao filho os pormenores do inocente namoro; Fernando concordou com prazer no casamento. - Já era tempo, disse a boa senhora suspirando. Estava com tanto medo que a Nicota também fosse ficando para o canto, como minha pobre Mariquinhas! - Coitada! Mas eu ainda tenho esperança de arranjar-lhe um bom partido, minha mãe. - Deus te ouça. Ah! ia-me esquecendo. Então há de ser preciso tirar algum dinheiro da Caixa Econômica por conta do que ela tem para cuidar do enxoval. - Já?... O moço ainda não a pediu. - Só espera licença de Nicota, e ela não quis dar, sem primeiro saber se era de teu gosto e meu. Hoje mesmo... - Está bem. Logo que eu possa, irei tirar o dinheiro; mas se precisa já de algum, tenho aqui. - Não; melhor é comprar tudo de uma vez. Fernando saiu contrariado. Com a vida que tinha, avultava sua despesa. O dinheiro que recebia mensalmente gastava-o com o hotel, o teatro, a galanteria, o jogo, as gorjetas, e mil outras verbas próprias de rapaz que luxa. No fim do ano, quando chegava a ocasião de saldar a conta do alfaiate, sapateiro, perfumista e da cocheira; não havia sobras. Recorreu ao dinheiro da Caixa Econômica; e não teve escrúpulo de o fazer, e desde que pontualmente continuou a entregar à mãe a mesada de 150$000, esperando uma aragem da fortuna para restituir ao pecúlio o que desfalcara. Mas em vez da restituição, foi entrando por ele de modo que muito havia se esgotara. Onde pois ia ele buscar o dinheiro que a mãe lhe pedira para o enxoval; e mais tarde o resto do quinhão da Nicota? Assinou Fernando o ponto na repartição, e como de costume, saiu para almoçar; depois do que dirigiu-se à casa do correspondente a quem ele incumbira de na sua ausência pagar a mensalidade a D. Camila, e enviar-lhe algumas encomendas. Contava com um saldo das remessas que havia feito de Pernambuco, e dos atrasados que deixara a cobrar. Esbarrou-se porém com um alcance superior a dous contos de réis; ao qual o correspondente começava a contar um juro de 12%. Seixas compreendeu a eloqüência dessa taxa, que significava uma intimação de imediato pagamento. Ao escurecer, tornando a casa para trajar-se pois tinha de ir a uma partida, achou três cartas, que haviam trazido em sua ausência. Uma era do Amaral. Enchia duas laudas; dizia muito, mas nada concluía; verdadeiro logogrifo epistolar, cuja decifração o autor deixava à perspicácia do Seixas. Em suma o pai de Adelaide escrevera uma folha de papel para preparar o pretendente a um próximo arrependimento da promessa. Quem estivesse traquejado no trato do Lemos, conheceria naquela prosa o seu estilo, pintalegrete, como o seu físico. As duas outras cartas eram simplesmente umas contas avulsas, mas não insignificantes, que Seixas deixara ao partir para Pernambuco, e de que já não tinha a menor idéia. Elas se faziam lembrar com o laconismo brutal desta verba: - Importância de sua conta entregue o ano passado - Rs. etc. Fernando amassou as três missivas em uma pelota que arremessou ao canto. A ruptura do ajuste de casamento, que em outra circunstância porventura o contentaria com a restituição da liberdade e responderia a um oculto desejo, naquele instante o acabrunhou. Viu nesse fato a prova esmagadora da ruína que ia tragá-lo e de que eram documentos as contas não pagas e as dívidas acumuladas. Na reunião, onde foi passar a noite, esperava-o a última decepção. Aceitando a comissão em Pernambuco, Seixas alcançara a promessa de na volta continuar com a sinecura da recopilação das leis; mas nessa manhã apresentando-se na secretaria surgiram certas dúvidas. Confiou em seus protetores. Apenas chegado o ministro, que era um dos convidados, despachou-lhe Fernando, um após outro, seus melhores empenhos dos dous sexos. Caso inaudito; o excelentíssimo foi inflexível; por força que andava aí volta de alguma intriga. Era um desfalque de conto e seiscentos nos rendimentos, e quando as urgências mais avultavam. Decididamente a mão do destino pesava sobre ele e o punia severamente dos pecadilhos da mocidade. Quando Seixas achava-se ainda sob o império desta nova contrariedade, apareceu na sala a Aurélia Camargo, que chegara naquele instante. Sua entrada foi como sempre um deslumbramento; todos os olhos voltaram-se para ela; pela numerosa e brilhante sociedade ali reunida passou o frêmito das fortes sensações. Parecia que o baile se ajoelhava para recebê-la com o fervor da adoração. Seixas afastou-se. Essa mulher humilhava-o. Desde a noite de sua chegada que sofrera a desagradável impressão. Refugiava-se na indiferença, esforçava-se por combater com o desdém a funesta influência, mas não o conseguia. A presença de Aurélia, sua esplêndida beleza, era uma obsessão que o oprimia. Quando, como agora, a tirava da vista fugindo-lhe, não podia arrancá-la da lembrança, nem escapar à admiração que ela causava e que o perseguia nos elogios proferidos a cada passo em torno de si. No Cassino, Seixas tivera um reduto onde abrigar-se dessa cruel fascinação. Ocupara-se de Adelaide, que então ainda o tratava como noivo; e desfizera-se em atenções e reqüestos, para não deixar presa à preocupação. Nessa noite, porém, obrigado a afastar-se da moça, com quem estavam rotas suas relações, ele não sabia o que fizesse, e pensava em retirar-se aterrado com a idéia de tornar-se o ludíbrio daquela mulher fatal, quando ouviu uma voz que o agitou. Ao voltar-se tinha diante de si Aurélia pelo braço de Torquato Ribeiro; e Adelaide conduzida por Alfredo Moreira. Seixas quis retirar-se; mas estava em uma estreita saleta, e um grupo de senhoras impedia-lhe a passagem. - Proponho-lhe uma troca, D. Adelaide. - Qual é, D. Aurélia? - Troquemos os pares. Aceita? Adelaide corou observando timidamente: - Podem ofender-se. - Não tenha susto. Aurélia deixou o braço de Torquato e tomou o do Moreira que exultou como se imagina. - Esta troca é paga da outra que fizemos, ou que fizeram por nós; ouviu, D. Adelaide? Soltando estas palavras com um riso argentino, Aurélia perpassou pelo semblante de Seixas o olhar sarcástico e imperioso. Fernando saiu desesperado. Compreendera que Aurélia escarnecia da repulsa que ele sofrera, e triunfava com seu infortúnio. Esta irrisão depois dos transtornos econômicos fez-lhe o efeito de um cautério aplicado ao talho. Lembrou-se da moça dos quinhentos contos, que lhe ha-viam proposto na véspera. Para ostentar sua riqueza nos salões, diante dessa mulher enfatuada de seu ouro, valia a pena casar-se, ainda mesmo com uma sujeita feia e talvez roceira. A roça é o viveiro de noivas ricas onde se provê a mocidade elegante da Corte; daí vinha a suposição de Seixas. No outro dia, depois de uma insônia atribulada, Fernando recapitulando as contrariedades com que o recebera a sua corte predileta, depois de uma ausência prolongada, chegou a esta dolorosa conclusão: que estava arruinado. Pobre, desacreditado, reduzido à vida de expedientes, com a sua carreira cortada, que futuro era o seu? Não lhe restava senão resignar-se à vegetação de emprego público com a ridícula esperança de alforria lá para os cinqüenta anos, sob a forma da mesquinha aposentadoria. Esta perspectiva o horrorizava. Entretanto sua posição nada tinha de assustadora. Com um pouco de resolução para confessar à mãe suas faltas, e algumas perseveranças em repará-las, podia ao cabo de dous anos de uma vida modesta e poupada restabelecer a antiga abastança. Mas essa coragem é que não tinha Seixas. Deixar de freqüentar a sociedade; não fazer figura entre a gente do tom; não ter mais por alfaiate o Raunier, por sapateiro o Campas, por camiseira a Cretten, por perfumista o Bernardo? Não ser de todos os divertimentos? Não andar ao rigor da moda? Eis o que ele não concebia. Sentia-se com ânimo para matar-se; mas para tal degradação reconhecia-se pusilânime. Este pânico da pobreza apoderou-se de Seixas, e depois de trabalhá-lo o dia inteiro, levou-o na manhã seguinte à casa do Lemos, onde efetuou-se a transação, que ele próprio havia qualificado, não pensando que tão cedo havia de tornar-se réu dessa indignidade. A uma justiça, porém, tem ele direito. Se previsse os transes por que ia passar durante a realização do mercado, e especialmente no ato de assinar o recibo, talvez se arrependesse. Mas arrastado de concessão em concessão, a dignidade abatida já não podia reagir. Três dias depois daquele em que recebera os vinte contos de réis, achou Seixas ao recolher-se um recado do tal Ramos nestes termos: "Prepare-se, que amanhã às 7 da noite vou buscá-lo para a apresentação." No dia seguinte, à hora marcada, com pontualidade mercantil, parava à porta do sobradinho da Rua do Hospício um carro, no qual poucos momentos depois seguia o Lemos caminho das Laranjeiras com o noivo que ele havia negociado para sua pu-pila. Durante o rápido trajeto, o velho divertiu-se em meter sustos no rapaz acerca da noiva, a quem sorrateiramente ia emprestando certos senões, a pretexto de os desculpar. Ora dava a entender que a moça tinha um olho de vidro; ora inculcava que era uma perfeita roceira, a qual o marido devia logo depois do casamento mandar para o colégio. Tão depressa inventava o negociante suas pilhérias, como as destruía com o costumado repique de riso, batendo três palmadinhas na perna de seu companheiro. - Ficou passado, hein, maganão!... Qual roceira! Esteja descansado! Não precisa de colégio; se ela já é uma academia! Tome meu conselho; trate de estudar, senão o senhor faz má figura! Eh! eh! eh!... Seixas não prestava atenção às facécias do velho; seu espírito estava nesse momento oprimido pela dolorosa convicção que tinha do abatimento e vergonha de sua posição. Agora sobretudo, ao começar a realização do mercado, que ele havia feito de sua pessoa, quando ia encontrar-se com a mulher a quem se alienara sem a conhecer, e em troca de um dote; agora é que toda a humilhação desse procedimento se lhe desenhava com as cores mais carregadas. O carro acabava de parar. O velhinho saltando ágil e lépido bateu no chão com os pés a fim de consertar as calças que ha-viam subido pelos canos das botas. - Escuso preveni-lo, observou Lemos, de que a pequena nada sabe, nem suspeita. Por enquanto não dê a perceber. X O portão ficava a uns trinta passos da casa que se erguia no centro de vasto jardim inglês. Todas as janelas do primeiro pavimento estavam abertas e despejavam cortinas de luz, que tremulavam nas águas do tanque e na folhagem verde agitada pela brisa. As visitas foram conduzidas pelo criado ao salão, onde apenas se achava D. Firmina Mascarenhas, e o Torquato Ribeiro, com quem o velho trocou algumas palavras no vão de uma janela, enquanto Seixas sentado junto ao sofá aguardava o terrível momento. Ouviu-se um frolido de sedas, e Aurélia assomou na porta do salão. Trazia nessa noite um vestido de nobreza opala, que assentava-lhe admiravelmente, debuxando como uma luva o formoso busto. Com as rutilações da seda que ondeava ao reflexo das luzes, tornavam-se ainda mais suaves as inflexões harmoniosas do talhe sedutor. Como que banhava-se essa estátua voluptuosa, em um gás de leite e fragrância. Seus opulentos cabelos colhidos na nuca por um diadema de opalas, borbotavam em cascatas sobre as alvas espáduas bombeadas, com uma elegante simplicidade e garbo original que a arte não pode dar, ainda que o imite, e que só a própria natureza incute. Via-se bem que essa altiva e gentil cabeça não carregava um fardo, talvez o espólio de um crânio morto, jogo cruel que a moda impõe às moças vaidosas. O que ela ostentava era a coma abundante de que a toucara a natureza, como às árvores frondosas; era a juba soberba de que a galanteria moderna coroou a mulher como emblema de sua realeza. Cingia o braço torneado, que a manga arregaçada descobria até a curva, uma pulseira também de opalas, como eram o frouxo colar e os brincos de longos pingentes que tremulavam na ponta das orelhas de nácar. Com o andar crepitavam as pedras das pulseiras e dos brincos, formando um trilo argentino, música do riso mavioso que essa graciosa criatura desprendia de si e ia deixando em sua passagem, como os harpejos de uma lira. Atravessou a sala com o brando arfar que tem o cisne no lago sereno, e que era o passo das deusas. No meio das ondulações da seda parecia não ser ela quem avançava; mas os outros que vinham a seu encontro, e o espaço que ia-se dobrando humilde a seus pés, para evitar-lhe a fadiga de o percorrer. Se Aurélia contava com o efeito de sua entrada sobre o espírito de Seixas, frustrara-se essa esperança; porque os olhos do mancebo, nublados por um súbito deslumbramento, não viram mais do que um vulto de mulher atravessar o salão e sentar-se no sofá. A moça porém não carecia dessas ilusões cênicas. Aquela aparição esplêndida era em sua existência um fato de todos os dias, como o orto dos astros. Se sua beleza surgia sempre brilhante no oriente dos salões, assim conservava-se toda a noite, no apogeu de sua graça. O Lemos, vendo entrar sua pupila, foi-lhe ao encontro e acompanhou-a até ao sofá: - Aurélia, tenho a honra de apresentar-lhe o Sr. Seixas. A moça correspondeu com uma leve inclinação da fronte à cortesia de Seixas, a quem estendeu a mão, que ele apenas tocou. Ainda neste momento o moço não conseguiu de si fitar a pessoa que tinha em face. Esse rosto desconhecido incutia-lhe indizível pavor: porque era a fisionomia de sua humilhação. Aurélia para romper o enleio da apresentação começara com o tio uma dessas conversas de sala, que suprem o piano e o canto; e que não passam, como eles, de um rumor sonoro para entender o ouvido. A extrema volubilidade com que a palavra lhe brincava nos lábios, fazia contraste com a rispidez do gesto sempre harmonio-so, e com um refrangimento que por assim dizer congelava-lhe o lado do perfil voltado para Seixas. Entretanto dissipou-se a grande comoção que percutira profundamente o organismo desse homem, desde o momento da entrada de Aurélia no salão, e lhe havia embotado os sentidos. Uma voz melodiosa penetrou-lhe n'alma, acordando ecos dali adormecidos. Pela primeira vez pôs os olhos no semblante da moça e imagine-se qual seria o seu pasmo reconhecendo Aurélia Camargo. Por algum tempo julgou-se vítima de uma alucinação. Custava-lhe a convencer-se que tivesse realmente diante de si a mulher de quem se julgava eternamente separado. A comoção foi tão forte que desvaneceu quase de seu espírito a lembrança do motivo que o trouxera àquela casa, e a posição falsa em que se achava. Uma satisfação íntima o absorveu completamente, e não deixou presa às amargas preocupações que pouco antes o dominavam. Também Aurélia de sua parte havia recobrado a calma, pois voltou-se sem o mínimo acanhamento para o moço e perguntou-lhe: - Esteve ultimamente no Norte, Sr. Seixas? - Sim, minha senhora. Cheguei a semana passada de Pernambuco. - Onde desempenhou uma comissão importante, acrescentou Lemos. - O Recife é realmente tão bonito como dizem? - Creio que poucas cidades do mundo lhe poderão disputar em encantos de perspectiva e beleza de situação. - Nem o nosso Rio de Janeiro? perguntou Aurélia com um sorriso. - O Rio de Janeiro é sem dúvida superior na majestade da natureza; o Recife porém prima pela graça e louçania. A nossa Corte parece uma rainha altiva em seu trono de montanhas; a capital de Pernambuco será a princesa gentil que se debruça sobre as ondas dentre as moitas de seus jardins. - É por isso que a chamam Veneza brasileira. - Não conheço Veneza; mas pelo que sei dela, não posso compreender que se compare um acervo de mármore levantado sobre o lodo das restingas, com as lindas várzeas do Capiberibe, toucadas de seus verdes coqueirais, a cuja sombra a campina e o mar se abraçam carinhosamente. - Já vejo que o senhor encontrou a musa no Recife, observou Aurélia gracejando. - Acha-me poético? Não fiz senão repetir o que provavelmente já disse algum vate pernambucano. Quanto à minha musa... ficou anjinho: morreu de sete dias e jaz enterrada na poeira da secretária! respondeu Seixas no mesmo tom. Tinham entrado várias visitas, cuja chegada interrompeu este diálogo. Aurélia ergueu-se para receber as senhoras, enquanto os cavalheiros se derramavam pela sala esperando o momento de apresentar suas homenagens à dona da casa. Notava-se a completa ausência dos pretendentes declarados de Aurélia; se algum conseguira ser convidado, devia o favor à circunstância de não ter revelado ainda suas intenções. Fatigada das adorações de que era alvo nos bailes e que se transformavam em verdadeira perseguição, Aurélia fizera dessas reuniões em família um como remanso onde se abrigava da obsessão do mundo. Aproveitando a confusão, Lemos levou Seixas à janela: - Então enganei-o? - Ao contrário; nunca eu poderia supor que fosse ela. - Pois agora que a conhece, é tempo de saber que sou eu o feliz tutor deste amorzinho; e que chamo-me Lemos e não Ramos. Diferença de duas letras apenas. Enquanto não se fechava o negócio, era preciso guardar o segredo. Compreende? Hein? Maganão!... E Lemos beliscou o braço de Seixas, o que era uma das mais significativas demonstrações de sua amizade. Por meio da noite, a moça ao atravessar a sala quando voltava de despedir-se de uma senhora, viu Seixas recostado a uma janela, pela parte de fora. A pretexto de fumar, o moço tinha saído ao jardim; e para de todo não seqüestrar-se da sociedade, tomara aquela posição da qual parecia acompanhar com a vista o que se fazia na sala; mas era como se ali não estivesse pela preocupação que nesse momento o reconcentrava. Essa primeira pausa que lhe deixavam os deveres da sociedade depois da entrada de Aurélia na sala, seu pensamento a aproveitou para bem compenetrar-se dos fatos que se acabavam de passar e aos quais buscava uma causa ou uma explicação. A moça a pretexto de olhar para o céu veio debruçar-se à mesma janela: - Está tão retirado! Também cultiva as estrelas? - Quais? As do céu? - Pois há outras? - Nunca lho disseram? - Talvez alguém se lembrasse disso; mas ainda não achei quem me fizesse acreditar, respondeu a moça com um sorriso. Seixas calou-se. Seu espírito além de pouco propenso a esses torneios da palavra, estava cativo de uma idéia importuna. - Quem sabe se vim perturbar alguma visão encantadora? insistiu Aurélia. - Não a tenho. Estava pensando nos caprichos da fortuna que me trouxe esta noite à sua casa. É isto uma graça ou uma ironia da sorte? A senhora é quem poderá dizer-me. Aurélia desatou a rir: - Era preciso que eu estivesse na intimidade dessa senhora, para conhecer-lhe as intenções; e apesar de muita gente considerar-me uma de suas prediletas, acredite que no fundo não nos gostamos. Isto disse-o a moça galanteando; mas logo ficou séria e prosseguiu: - O que eu compreendo dessas palavras é que o Sr. Seixas arrependeu-se de não haver empregado melhor seu tempo. - E tenho eu o direito de arrepender-me! disse o moço em voz baixa, como temendo que o ouvissem. - Como está misterioso, meu Deus! Não fala senão por enigmas. Confesso que não o entendo. Carece alguém de direito para arrepender-se de uma cousa tão simples como uma vi-sita! - Tem razão, D. Aurélia. Desculpe; ainda não me recobrei da surpresa. Vindo a esta casa, não esperava encontrá-la. Estava longe de pensar... - Tanto lhe desagradou o encontro? perguntou Aurélia sorrindo. - Se eu ainda acreditasse na felicidade, diria que ela me tinha sorrido. - E por que descreu? Seixas fitou um olhar melancólico no semblante da moça: - Que interesse lhe pode isso inspirar?... Questão de gênio; a alguns nunca a esperança os abandona, a outros falta de todo a fé, e desanimam com a menor decepção. E a senhora, D. Aurélia? Há pouco ouvi-lhe uma alusão; foi de certo gracejo! Diga-me, é feliz? - Creio que sim; pelo menos todos o afirmam, e eu não posso ter a presunção de conhecer melhor o mundo do que tantas pessoas mais sabedoras e experientes que a minha cabecinha-de-vento. Assim, para não desmentir a opinião geral, considero-me a mais ditosa moça do Rio de Janeiro. Todos os meus caprichos são logo satisfeitos; não formo um desejo que não o veja realizado. Por toda a parte cercam-me de adorações e louvores que eu não mereço, e que por isso mesmo se tornam mais lisonjeiros. - Nada lhe falta portanto. - Diz meu tutor que me falta um marido; e ele incumbiu-se de o escolher. - Qualquer?... É-lhe isto indiferente? perguntou Seixas sorrindo. - Está entendido que só aceitarei o que me agradar; mas não quero ter o aborrecimento de ocupar-me com semelhante assunto. - Tão pouco lhe interessa! - Ao contrário; tanto receio tenho de comprometer eu mesma o meu futuro, que o confio à sorte. Deus proverá. Seixas interrogava o semblante risonho da moça para descobrir laivos de ironia sob aquela graciosa volubilidade. - E no seio de sua opulência, nos raros instantes de repouso que permitem os prazeres de sua vida elegante, não lhe acode alguma recordação de outros tempos?... - Não falemos do passado! exclamou a moça com um modo ríspido. Meigo sorriso, porém, apagou logo a veemência do gesto e a cintilação do olhar: - Nosso conhecimento data de hoje, Sr. Seixas. Os mortos, deixemo-los dormir em paz. Vertendo então n'alma do moço os eflúvios de seu inefável sorriso, Aurélia retirou-se da janela. XI Desde então Seixas encontrou-se quase todas as noites com Aurélia, ou em casa desta, ou na sociedade. A maneira afável por que a moça o tratava tinha, se não desvanecido completamente, ao menos embotado, as susce-tibi-lidades de sua consciência acerca do ajuste que fizera com Lemos. Não que se absolvesse da culpa; mas esperava remi-la pelo amor. Suas conversas com Aurélia versavam ordinariamente sobre temas de sala. Às vezes, porém, ele aproveitava um pretexto para falar-lhe nesse estilo terno e mavioso, que é como o canto do amor, e por isso não carece da idéia, mas somente do vocábulo sonoro, para embalar o coração aos suaves harpejos dessa música. Então Aurélia pendia a fronte, e escutava com recolhimento o lirismo da palavra inspirada pelo moço; todavia, nunca em seu rosto ou em sua pessoa transpareceu o menor sinal de retribuição a esse afeto. Ela abria a alma ao amor; porém o amor que filtrava nas meigas falas de Seixas evaporava-se como uma fragrância que a envolvia um instante, sem penetrar-lhe os seios d'alma. Houve ocasião em que escapou a Seixas outra alusão ao passado. Como da primeira vez ela o atalhou: - Esse tempo não existe para mim. Nasci há um ano. Encontrando-se uma tarde com Lemos, Seixas o interpelou: - Tenho um favor a pedir-lhe. - Dois que sejam. - Diga-me com franqueza, qual o motivo por que o senhor escolheu-me de preferência para marido de sua pupila, quando nem me conhecia? O velho debulhou uma risadinha que lhe era peculiar. - Hã! hã!... Então quer saber? Pois lá vai; não faço mistério, não me convinha que a pequena se deixasse iludir pelas lábias de um desses bigodinhos que lhe andam ao faro do dote. Então soube que ela outrora gostara do senhor, e como pelas informações que tinha, me quadrava, fui procurá-lo. Agora o resto é por sua conta, maganão. Esta explicação mais serenou o espírito do moço, e dissipou uns últimos rebates que ainda o assaltavam às vezes. Pensando bem, o modo por que ajustara seu casamento não era nenhuma novidade; todos os dias se estavam fazendo dessas alianças de conveniência, em termos idênticos; se não mais positivos. Além disso a sorte, por uma feliz coincidência, fizera que desse projeto de casamento de razão surtisse um enlace de amor; de modo que o coração absolvia e santificava quanto se havia feito para realização de seus votos. Continuou pois Seixas com os seus doces madrigais e os maviosos noturnos ao canto da sala. Depois da noite da apresentação deixara Lemos a seu protegido, como o chamava, o cuidado de arranjar seus negócios. Apareceu-lhe porém uma manhã: - Meu amigo, se não tem que fazer agora, vamos concluir o negócio. Isto de casamento é como a sopa; não se deixa es-friar. Seixas também tinha pressa de sair da situação em que se achava; temia a cada instante ver dissipada a doce ilusão com que sua alma disfarçava a transação por ele aceita. A idéia de aparecer ante a moça sob o aspecto de um especulador, era-lhe suplício. Acedeu prontamente ao convite do negociante, e acompanhou-o à casa de Aurélia, em trajo de cerimônia. A moça prevenida da visita os esperava no salão, onde foram logo introduzidos; depois dos cumprimentos e de uma conversa frouxa e distraída, Lemos, formalizando-se, tomou a palavra: - D. Aurélia, o Sr. Seixas a quem já conhece por suas exce-lentes qualidades, pessoa digna de toda a estima, pediu-me sua mão. Por minha parte eu não podia fazer melhor escolha, em todos os sentidos; mas tudo isto nada vale, se não tiver a fortuna de merecer o seu agrado. Aurélia fitou em seu pretendente um olhar que desmentia o sorriso em flor de seus lábios. - Não lhe assustam meus caprichos e excentricidades? - Se eu os adoro! respondeu Seixas galanteando. - Não lhe parece difícil fazer a felicidade de um coração desabusado como este meu, e tão afligido pela dúvida? - Tenho fé no meu amor; com ele vencerei o impossível. Apagou-se nos lábios de Aurélia o sorriso; e a expressão de um ardente anelo, ressumbrando do mais profundo de sua alma, imergiu-lhe o semblante. - Aqui tem a minha mão; e tudo quanto posso dar-lhe. A mulher que ama e que sonhou, essa não a possuo. Mas se o senhor tiver o poder de a realizar, ela lhe pertencerá absolutamente como sua criatura. Acredite que esta é a esperança de minha vida, eu a confio de sua afeição. A moça com um gesto de sublime abandono oferecera sua mão acetinada a Seixas, que a beijou murmurando as efusões de seu júbilo e gratidão. O Lemos que se apartara discretamente para não acanhar os noivos, tornou à conversação, que reassumiu o tom ligeiro das banalidades do costume. A notícia do próximo casamento de Aurélia produziu na sociedade fluminense grande assombro. Ninguém podia capacitar-se de que essa moça, pretendida pelo creme dos noivos fluminenses, podendo escolher à vontade, entre os seus inúmeros adoradores, maridos de toda a espécie, tivesse o mau gosto de enxovalhar-se com um escrevinhador de folhetins. O Alfredo Moreira, quando a encontrou depois da novidade, não pôde esconder o despeito: - Então casa-se? - É verdade. - Afinal achou; cotação muito alta sem dúvida? replicou o elegante com ironia. - Não, tornou-lhe a moça no mesmo tom. Ficou-me por uma ninharia. - Ah! estimo muito. Que preço? - Quer saber o preço? - Estou curioso. - Foi o seu. O Moreira mordeu os beiços e riu-se. Apesar de tudo não perdera a derradeira esperança. O projetado casamento podia desfazer-se por qualquer motivo, e não era difícil que a moça de um momento para outro se arrependesse da escolha com a mesma volubilidade com que a tinha feito de repente e por um capricho. Assim pensava o malogrado pretendente; enquanto que todos os indícios pareciam revelar da parte de Aurélia a firme intenção de persistir na primeira resolução, que ela não tomara, senão depois de muito refletida. Desde que anunciou-se o casamento, começou a moça a aparecer mais raramente na sociedade, até que de todo retirou-se; limitando-se ao pequeno círculo que freqüentava sua casa, e no qual ela por assim dizer espanejava sua alma de um certo entorpecimento que lhe deixavam as ternas confidências e devaneios namorados do noivo. Seixas pelas palavras que Aurélia havia proferido tão d'alma, na ocasião de dar-lhe a mão de esposa, julgara compreender o segredo das estranhezas e oscilações do caráter da moça. Ela duvida que eu a ame; pensou consigo. Suspeita que tenho a mira em sua riqueza. É preciso que a convença da sinceridade de minha afeição. Se ela soubesse! Um desgraçado pode sacrificar sua liberdade; mas a alma não se vende! Imbuído dessa idéia, não é de estranhar que Seixas tivesse em suas expansões uma exuberância que descaía em exageração. Muitas vezes fatigada, se não opressa, dessas demonstrações apaixonadas, Aurélia que debalde tentara adormecer com elas as desconfianças de sua alma, exclamava entre fagueira e irônica: - Ah! deixe-me respirar! Nunca fui amada, nem pensei que o seria com tamanha paixão. Careço de habituar-me aos -poucos. A residência de Laranjeiras fora recentemente preparada com luxo correspondente às avultadas posses da herdeira, e já na previsão do próximo consórcio. Poucos eram os preparativos a fazer, para a celebração do casamento, e esses, apressou-os o dinheiro, que é o primeiro e mais eloqüente dos improvisadores. Tratou-se pois de marcar o dia. O Lemos pôs em discussão a questão dos padrinhos. Já ele tinha cogitado sobre o assunto, e segundo a moda de nossa sociedade julgava indispensável pelo menos uma baronesa para madrinha e dois figurões, cousa entre senador e ministro, para padrinhos. Não tinha ele amizade com gente dessa plaina, mas entendia que um simples conhecimento de chapéu, e até mesmo a carta de recomendação eram títulos suficientes para solicitar semelhantes favores, com que a vaidade dos grandes se lisonjeia e a presunção dos pequenos se exalta. Grande foi portanto o embaraço de Lemos quando Aurélia declarou que um dos seus padrinhos havia de ser o Dr. Torquato Ribeiro. - Que lembrança! disse Fernando involuntariamente. - Desagrada-lhe? Na fisionomia da moça perpassou um súbito lampejo. Podia-se tomar esse brilho pela chispa do solitário de seu anel que a luz feria, quando a mão corrigia um crespo do cabelo desprendido do toucado. - Podia escolher outra pessoa, Aurélia. - Não é seu amigo? Ah! cuidava!... - Não tem posição. - Decerto! acudiu Lemos. A posição é essencial. Um simples bacharel não correspondia por modo algum à noção aristocrática que o velho tinha do paraninfo de uma herdeira milionária. Além de que transtornava-lhe o plano, pois os altos personagens convidados declinariam infalivelmente de ombrear com um rapazola que nem comendador era. Aurélia porém não cedeu. No dia seguinte assinou-se a escritura nupcial de separação de bens que assegurava a Seixas um dote de cem contos de réis. A moça que sempre esquivara-se à mínima interferência em assuntos pecuniários, deixando esse cuidado ao tutor e conservando-se de todo estranha a semelhantes arranjos, ainda desta vez soube evitar qualquer inteligência com seu noivo acerca de interesses materiais. Lemos levou Seixas ao cartório do Fialho, dizendo-lhe que era isso uma exigência do juiz de órfãos, no que não faltou à verdade, embora fosse antes a vontade da herdeira quem determinara essa condição, que facilmente se ilude no foro. Só mais tarde assinou Aurélia, para o que levou-lhe o tabelião o livro à casa. Nenhuma palavra porém trocou-se entre ela e o noivo a tal respeito. XII Reunira-se na casa das Laranjeiras, a convite de Aurélia, uma sociedade escolhida e não muito numerosa para assistir ao casamento. A moça não aceitou a idéia de dar um baile por esse motivo; mas entendeu que devia cercar o ato da solenidade precisa, para tornar bem notória a espontaneidade de sua escolha e o prazer que sentia com esse enlace. Não faltaram amigos e conhecidos, que sugerissem a Aurélia a lembrança de fazer o casamento à moda européia, com o romantismo da viagem logo depois da cerimônia, a lua-de-mel campestre, e o baile de estrondo na volta à Corte. Ela, porém, recusou todos esses alvitres; resolveu casar-se ao costume da terra, à noite, em oratório particular, na presença de algumas senhoras e cavalheiros, que lhe fariam, a ela órfã e só no mundo, as vezes da família que não tinha. Celebrara-se a cerimônia às oito horas. Lemos conseguira um barão para servir de contrapeso ao Ribeiro e um monsenhor para oficiar. Quanto à madrinha, Aurélia escolhera D. Margarida Ferreira, respeitável senhora, que lhe mostrara desinteressada amizade, desde a primeira vez que a encontrou na sociedade. No momento de ajoelhar aos pés do celebrante, e de pronunciar o voto perpétuo que a ligava ao destino do homem por ela escolhido, Aurélia com o decoro que revestia seus menores gestos e movimentos, curvara a fronte, envolvendo-se pudicamente nas sombras diáfanas dos cândidos véus de noiva. Mau grado seu, porém, o contentamento que lhe enchia o coração e estava a borbotar nos olhos cintilantes e nos lábios aljofrados de sorriso, erigia-lhe aquela fronte gentil, cingida nesse instante por uma auréola de júbilo. No altivo realce da cabeça e no enlevo das feições cuja formosura se toucava de lumes esplêndidos, estava-se debuxando a soberba expressão do triunfo, que exalta a mulher quando consegue a realidade de um desejo férvido e longamente ansiado. Os convidados, que antes lhe admiravam a graça peregrina, essa noite a achavam deslumbrante, e compreendiam que o amor tinha colorido com as tintas de sua palheta inimitável, a já tão feiticeira beleza, envolvendo-a de irresistível fascinação. - Como ela é feliz! diziam os homens. - E tem razão! acrescentaram as senhoras volvendo os olhos ao noivo. Também a fisionomia de Seixas se iluminava com o sorriso da felicidade. O orgulho de ser o escolhido daquela encantadora mulher ainda mais lhe ornava o aspecto já de si nobre e gentil. Efetivamente, no marido de Aurélia podia-se apreciar essa fina flor da suprema distinção, que não se anda assoalhando nos gestos pretensiosos e nos ademanes artísticos; mas reverte do íntimo com uma fragrância que a modéstia busca recatar, e não obstante exala-se dos seios d'alma. Depois da cerimônia começaram os parabéns que é de estilo dirigir aos noivos e a seus parentes. Só então reparou-se na presença de uma senhora de idade, que ali estava desde o princípio da noite. Era D. Camila, mãe de Seixas, que saíra de sua obscuridade para assistir ao casamento do seu Fernando, e sentindo-se deslocada no meio daquela sociedade, retirou-se com as filhas logo depois de concluído o ato. Para animar a reunião as moças improvisaram quadrilhas, no intervalo das quais um insigne pianista, que fora mestre de Aurélia, executava os melhores trechos de óperas então em voga. Por volta das dez horas despediram-se as famílias convi-dadas. Encaminhou-se então Lemos com Seixas para aquela parte da casa onde ficavam os aposentos, que Aurélia destinara a seu marido, os quais estavam preparados com muito luxo, e sobretudo com uma novidade de muito gosto. - Meu amigo, o senhor está casado, pelo que já lhe dei os meus parabéns; falta-me porém cumprir um dever, que me cabe como tutor que fui de sua mulher, e a quem nesta noite ainda faço as vezes de pai. - Também eu esperava este momento para agradecer-lhe os cuidados e desvelos que dispensou a Aurélia, e assegurar-lhe minha sincera amizade. - Não fiz mais do que pagar uma dívida à minha boa irmã. Estimo esta pequena como se fosse minha filha; vi-a nascer. Tirando do bolso uma argola de chaves, o velho passou a abrir os diversos móveis de érable, que ia deixando às escancaras. Enquanto expedia-se nessa tarefa, ia falando: - Vou ter a satisfação de o instalar em seus novos aposentos. Aqui está o seu gabinete de trabalho; ali é o toucador; deste lado do jardim fica um quarto de banho, e uma saleta de fumar com entrada independente para receber seus amigos. Tudo isto é um brinco. - Bem reconheço a mão de Aurélia; estou sentindo em todos estes objetos o aroma que exala de sua beleza, disse Seixas inebriado de felicidade. - Foi ela, sim senhor, que se incumbiu disso; mas ainda não viu tudo. Olhe o enxoval. Lemos mostrou então as gavetas e prateleiras dos guarda-roupas e cômodas atopetados das várias peças de vestuário, feito de superior fazenda e com maior apuro. Nada faltava do que pode desejar um homem habituado a todas as comodidades da moda. No toucador, se o tabuleiro de mármore ostentava toda a casta de perfumarias, as gavetas continham cópias de jóias próprias de um cavalheiro elegante. Algumas havia de grande preço, como o anel de rubim, e uma abotoadura completa de brilhantes. - Tudo isto lhe pertence, disse o velho terminando o inventário. É cousa lá da pequena; não entrou em nosso ajuste. Seixas experimentou sensação igual à do homem que no meio de um sonho aprazível fosse arremessado a um pântano e acordasse chafurdado na torpe realidade. A palavra ajuste, ali naquele instante, quando acabava de santificar pelo juramento o eterno amor que votava a sua esposa; quando estava-se revendo em sua lembrança, de que a moça deixara impregnada a cada passo o luxo e elegância daqueles aposentos; essa palavra proferida sem intenção pelo velho, infligiu-lhe a mais acerba das humilhações. Entretanto Lemos fechava as portas e gavetas que tinha aberto; e terminou apresentando a Seixas a argola de chaves. - Aqui tem, meu caro. Só uma chave não lhe posso eu dar; é dali. O velho indicou na extrema de um breve corredor uma porta oculta por um reposteiro de seda azul com flecha dourada. - Quando aquela porta abrir-se, não haverá em todo este Rio um maganão mais feliz! E o velho repicando a sua fustigante risadinha de falsete, tornou ao salão, onde encontrou cinco negociantes, velhos camaradas, que a seu pedido se haviam demorado, e achavam-se um tanto embrulhados com a história. - Ó Lemos, não dirás que fazemos nós ainda a esta hora aqui? Olhe, que para trapalhão temos conversado. - Querem ver que o brejeiro pretende fazer o negócio com toda a solenidade! Vocês não viram o aquele... o tabelião? - É verdade; chamaram-no agora mesmo. E nós seremos as testemunhas. Aqui desafogaram-se os sujeitos em boas risadas. - Quase que adivinharam vocês; disse o Lemos; venham cá e verão o que é. Na saleta, onde Lemos introduziu seus amigos, estava sentado à mesa do centro um tabelião, que assistira à cerimônia como convidado e parecia agora em atitude de exercer algum ato do ofício. Pela porta fronteira acabava de entrar Aurélia, em companhia de D. Firmina. A moça trazia nos ombros uma peliça de caxemira cinzenta, que disfarçava seu traje de noiva, cingindo-lhe a cabeça com o frouxo capuz. A auréola de júbilo, que resplandecia-lhe a beleza quando ajoelhada aos pés do altar e ao lado do noivo, não se ofuscara; mas ia empalidecendo. Às vezes, súbito erriçamento estremecia-lhe o talhe delicado; percebia-se nesses momentos um eclipse da luz íntima, como o vágado de uma lâmpada a apagar-se. Ela sentou-se defronte do tabelião; aos lados da mesa tomaram lugar Lemos e os outros negociantes. - Peço aos senhores que me desculpem este incômodo; e aceitem meu reconhecimento por sua bondade em acompanhar-me neste capricho. Houve uns protestos murmurados. - É minha última excentricidade! tornou Aurélia com adorável sorriso. Ainda estou me despedindo da vida de moça; por isso mereço alguma indulgência. Demais, pensando bem, não é tão extravagante o que faço agora, pois o testamento também faz parte da confissão. Quero aproveitar este momento em que ainda sou senhora de mim e das minhas vontades, para declarar a última, que foi também a primeira de minha vida. Apesar da garridice com que proferiu a moça estas palavras, e da graça jovial que o seu mago sorriso espargia sempre em torno de si, um sentimento de vaga e indefinível tristeza pungiu as pessoas presentes; especialmente quando Aurélia entregou ao tabelião o testamento por ela escrito em uma folha perfumada de papel cetim, a gume dourado, com o monograma A.C. em relevo escarlate. A associação de dois atos tão opostos, a aurora da existência e sua despedida; a idéia da morte a entrelaçar-se naquela mocidade tão rica de todas as prendas; a grinalda de noiva cingindo uma fronte a desfalecer; esse contraste era para deixar funda impressão no ânimo. Aviou o tabelião o termo de aprovação com as fórmulas consagradas; e no meio do mais profundo silêncio restituiu à moça o testamento já cerrado com um torçal de seda e pingos de lacre dourado, cujo perfume derramou-se pela sala. Nunca a abstrusa e rançosa algaravia de cartório se vira tão catita. O papel, com ser testamento, não desdizia da linda mão que traçara o contexto, e d'alma gentil que talvez nele havia encerrado, com sua última vontade, o perfume de lágrimas ignotas. Ao despedir-se da pupila, Lemos apertou-lhe a mão: - Desejo-lhe que seja muito e muito feliz. - Se o não for, será minha e minha só a culpa, respondeu a moça agradecendo-lhe. D. Firmina quis acompanhar a moça ao toucador, para prestar-lhe os serviços de camareira de honra, que são de costume e privilégio da mãe, e na falta desta, da mais próxima parenta. Recusou Aurélia; abraçando a velha senhora, disse-lhe comovida: - Reze por mim! Ficando só, a moça fechou à chave a porta da saleta e murmurou: - Enfim! Em todo aquele lado da casa não havia senão ela e seu marido. XIII Afastemos indiscretamente uma dobra do reposteiro que recata a câmara nupcial. É uma sala em quadro, toda ela de uma alvura deslumbrante, que realça o azul-celeste do tapete de riço recamado de estrelas e a bela cor de ouro das cortinas e do estofo dos móveis. A um lado, duas estatuetas de bronze dourado representando o amor e a castidade sustentam uma cúpula oval de forma ligeira, donde se desdobram até o pavimento, bambolins de cassa finíssima. Por entre a diáfana limpidez dessas nuvens de linho, percebe-se o molde elegante de uma cama de pau-cetim, pudicamente envolta em seus véus nupciais, e forrada por uma colcha de chamalote também cor de ouro. Do outro lado, há uma lareira, não de fogo, que o dispensa nosso ameno clima fluminense, ainda na maior força do inverno. Essa chaminé de mármore cor-de-rosa é meramente pretexto para o cantinho de conversação, pois que não podemos chamá-lo como os franceses o coin du feu. A bem dizer a lareira não passa de uma jardineira que esparze o aroma de suas flores, em vez do brando calor do lume, por aquele círculo, onde estão dispostas algumas poltronas baixas e derreadas, transição entre a cadeira e o leito. O aposento é iluminado por uma grande lâmpada de gás, cujo globo de cristal opaco filtra uma claridade serena e doce, que derrama-se sobre os objetos e os envolve como de um creme de luz. Correu-se uma cortina, e Aurélia entrou na câmara nupcial. Seu passo deslizou pela alcatifa de veludo azul marchetado de alcachofras de ouro, como o andar com que as deusas per-lus-travam no céu a galáxia quando subiam ao Olimpo. A formosa moça trocara seu vestuário de noiva por esse outro que bem se podia chamar trajo de esposa; pois os suaves emblemas da pureza imaculada, de que a virgem se reveste quando caminha para o altar, já se desfolhavam como as pétalas da flor no outono, deixando entrever as castas primícias do santo amor conjugal. Trazia Aurélia uma túnica de cetim verde, colhida à cintura por um cordão de torçal de ouro, cujas borlas tremiam com seu passo modulado. Pelos golpeados deste simples roupão borbulhavam os frocos de transparente cambraia, que envolviam as formas sedutoras da jovem mulher. As mangas amplas e esvasadas eram apanhadas, na covinha do braço e sobre a espádua, por um broche onde também prendia a ombreira, mostrando o braço mimoso, cuja tez roseava a camisa de cambraia abotoada no punho por uma pérola. Os lindos cabelos negros refluíam-lhe pelos ombros presos apenas com o aro de ouro, que cingia-lhe a opulenta madeixa; o pé escondia-se em um pantufo de cetim que às vezes beliscava a orla da anágua, como um travesso beija-flor. O casto vestuário da moça recatava-lhe as graças do talhe; entretanto quando ela andava, e que seu corpo airoso nadava nas ondas de seda e cambraia, sentia-se mais n'alma do que nos olhos o debuxo da estátua palpitante de emoção. A cada movimento que imprimia-lhe o passo onduloso, acreditava-se que o broche da ombreira partira-se e que os véus zelosos se abatiam de repente aos pés dessa mulher sublime, desvendando- uma criação divina, mas de beleza imaterial, e vestida de esplendores ce-lestes. Aurélia atravessou o aposento, e chegando à porta que ficava fronteira àquela por onde entrara, curvou de leve a cabeça recolhendo-se para escutar; mas não ouviu senão o arfar do seio, que ofegava. Afastou-se rapidamente, e foi atirar-se a uma das poltronas, em um gesto de desânimo, cruzando as mãos e erguendo-as ao céu com um olhar repassado de angústia. - Meu Deus, por que não me fizeste como as outras? Por que me deste este coração exigente, soberbo e egoísta? Posso ser feliz como são tantas mulheres neste mundo, e beber na taça do amor, em que talvez nunca mais toquem estes lábios. Não é o néctar divino que eu sonhei, não; mas dizem que embriaga a alma, e faz esquecer!... O espírito de Aurélia rastreou a idéia que despontava, e por algum tempo como que embalou-se num sonho: - Não! exclamou arrebatadamente. Seria a profanação deste santo amor que foi e será toda a minha vida! Ergueu-se; deu algumas voltas pela câmara nupcial acarician-do com os olhos todos estes móveis e adereços, que ela escolhera para ornarem o regaço de sua felicidade, e nos quais tinha como que esculpido suas mais queridas esperanças. Depois que assim repassou-se das reminiscências que lhe acordavam esses objetos, foi rever-se no espelho, e enviou à sua feiticeira imagem reproduzida no cristal, um sorriso de inde-finí-vel expressão. Dirigiu-se então à porta, onde pouco antes escutara; deu volta à chave, e afastou uma das bandas. Pouco depois, Seixas roçagou a cortina, e cingindo o talhe de sua mulher, foi sentá-la em uma das cadeiras. - Como tardaste, Aurélia! disse ele queixoso. - Tinha um voto a cumprir; quis emancipar-me logo de uma vez para pertencer toda a meu único senhor; respondeu a moça galanteando. - Não me mates de felicidade, Aurélia! Que posso eu mais desejar neste mundo do que viver a teus pés, adorando-te, pois que és a minha divindade na terra. Seixas ajoelhou aos pés da noiva; tomou-lhe as mãos que ela não retirava; e modulou o seu canto de amor, essa ode sublime do coração, que só as mulheres entendem, como somente as mães percebem o balbuciar do filho. A moça com o talhe languidamente recostado no espaldar da cadeira, a fronte reclinada, os olhos coalhados em uma ternura maviosa, escutava as falas de seu marido; toda ela se embebia dos eflúvios de amor, de que ele a repassava com a palavra ardente, o olhar rendido, e o gesto apaixonado. - É então verdade que me ama? - Pois duvida, Aurélia?


E amou-me sempre, desde o primeiro dia que nos vimos? - Não lho disse já? - Então nunca amou a outra? - Eu lhe juro, Aurélia. Estes lábios nunca tocaram a face de outra mulher, que não fosse minha mãe. O meu primeiro beijo de amor, guardei-o para minha esposa, para ti... Soerguendo-se para alcançar-lhe a face, não viu Seixas a súbita mutação que se havia operado na fisionomia de sua -noiva. Aurélia estava lívida, e a sua beleza, radiante há pouco, se marmorizara. - Ou de outra mais rica!... disse ela retraindo-se para fugir ao beijo do marido, e afastando-o com a ponta dos dedos. A voz da moça tomara o timbre cristalino, eco da rispidez e aspereza do sentimento que lhe sublevava o seio, e que parecia ringir-lhe nos lábios como aço. - Aurélia! Que significa isto? - Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter este orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos escarnecendo mutuamente, senhor. Entremos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido. - Vendido! exclamou Seixas ferido dentro d'alma. - Vendido, sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica; sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento. Aurélia proferiu estas palavras desdobrando um papel, no qual Seixas reconheceu a obrigação por ele passada ao Lemos. Não se pode exprimir o sarcasmo que salpicava dos lábios da moça; nem a indignação que vazava dessa alma profundamente revolta, no olhar implácavel com que ela flagelava o semblante do marido. Seixas, trespassado pelo cruel insulto, arremessado do êxtase da felicidade a esse abismo de humilhação, a princípio ficara atônito. Depois quando os assomos da irritação vinham sublevando-lhe a alma, recalcou-os esse poderoso sentimento do respeito à mulher, que raro abandona o homem de fina educação. Penetrado da impossibilidade de retribuir o ultraje à senhora a quem havia amado, escutava imóvel, cogitando no que lhe cumpria fazer; se matá-la a ela, matar-se a si, ou matar a ambos. Aurélia como se lhe adivinhasse o pensamento, esteve por algum tempo afrontando-o com inexorável desprezo. - Agora, meu marido, se quer saber a razão por que o comprei de preferência a qualquer outro, vou dizê-la; e peço-lhe que me não interrompa. Deixe-me vazar o que tenho dentro desta alma, e que há um ano a está amargurando e consumindo. A moça apontou a Seixas uma cadeira próxima. - Sente-se, meu marido. Com que tom acerbo e excruciante lançou a moça esta frase meu marido, que nos seus lábios ríspidos acerava-se como um dardo ervado de cáustica ironia! Seixas sentou-se. Dominava-o a estranha fascinação dessa mulher, e ainda mais a situação incrível a que fora arrastado.


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