Ao passo que ela acariciava com um acerbo requinte a desafronta de seu amor ludibriado, e prelibava o cáustico prazer da humilhação desse homem, que a traficava, vinham momentos em que alheava-se completamente dessa preocupação da vingança, para entregar-se às fagueiras ilusões. Tinha sede de amor; e como não o encontrava na realidade, ia bebê-lo a longos haustos na taça de ouro, que lhe apresentava a fantasia. Essas horas via-as com seu ideal; e eram horas inebriantes e deliciosas. Nelas foi que a jovem mulher se esmerou em ornar estas salas e gabinetes. Sonhava que iam ser habitados pelo único homem a quem amara, e que lhe retribuía com igual paixão. Queria que esse ente querido achasse como que entranhada na elegância dos aposentos, sua alma palpitante, que o envolvesse e encerrasse dentro em si. Ao rever o lugar e objetos, que tinham sido companheiros daquelas cismas e ardentes emoções, Aurélia cedeu um instante à mágica influência de recordos, os quais se desdobravam como as névoas aljofradas, que empanam a luz do sol e mitigam-lhe a calma. Arrancando-se afinal a esse enlevo de um passado, que nem ao menos era real, e só existira como uma doce quimera, a moça percorreu então o aposento, e volveu um olhar perscrutador. Notou o que aliás era bem visível. O toucador estava completamente despido de todas as galanterias, de que ela o havia adornado com sua própria mão. Parecia um móvel chegado naquele instante da loja. Os guarda-roupas, cômodas, secretárias, tudo fechado, e na mesma nudez, que denunciava falta de uso. - É por isso!... murmurou a moça consigo. O criado não suspeita o motivo, e atribui à mesquinheza. Uma das mais tocantes puerilidades de Aurélia, quando sonhava o casamento com o homem amado, fora a igualdade das fechaduras de todas as partes e móveis do uso especial de cada um. Duas almas que se unem, pensava ela em sua terna abnegação, não têm segredos e devem possuir-se uma à outra completamente. Quando reuniu em argolas de ouro, as duas séries de chaves ao todo iguais, sorriu-se e imaginou que na noite do casamento, quando seu marido se lhe ajoelhasse aos pés, ela o ergueria em seus braços para dizer-lhe: - Aqui estão as chaves de minha alma e de minha vida. Eu te pertenço; fiz-te meu senhor; e só te peço a felicidade de ser tua sempre! Em que abismo de dor e vergonha se tinham submergido essas visões maviosas, já o sabemos. Ninguém suspeitou jamais nem ela revelou nunca, a voragem de desespero oculta sob aquele formoso colo, que parecia arfar unicamente com as brandas emoções do amor e do prazer. Aurélia abriu com suas chaves os móveis; e confirmou-se em uma conjetura. Tudo, jóias, perfumarias, utensílios de toucador, roupa, tudo ali estava guardado em folha, como viera da loja. - Que significação tem isto? murmurou a moça interrogando atentamente seu espírito. Parece desinteresse... Mas não! Não pode ser. Em todo caso há um plano, uma idéia fixa. Outro dia o carro; agora isto!... Refletiu algum tempo mais, e concluiu: - Não compreendo. Aurélia tinha razão. Se com essa obstinação, Seixas queria mostrar desapego à riqueza adquirida pelo casamento, fazia um ridículo papel; pois o enxoval não era senão um insignificante acessório do dote em troca do qual tinha negociado sua liber-dade. A porta do quarto de dormir estava fechada. Aurélia abriu-a com a chave parelha que havia em sua argola. Ali achou a escrivaninha, que servia de toucador provisório a Seixas, e uns pentes e escovas de ínfimo preço. - Agora entendo. Quer mortificar-me. Depois do jantar, passeavam no jardim; Aurélia tendo colhido uma rosa, afagava com as pétalas macias o cetim de suas faces, mais puro que o matiz da flor. - Hoje estive em seu toucador, disse ela com simulada indiferença. - Ah! fez-me esta honra? - Uma dona-de-casa, bem sabe, tem obrigação de ver tudo. - A obrigação e o direito. - O direito aqui seria da mulher, e não só este como outros mais. - Eu os reconheço, disse Fernando. - Ainda bem. Vejo que nos havemos de entender. Este diálogo, quem o ouvisse de parte, não lhe descobriria a menor expressão hostil ou agressiva. Os dois atores deste drama singular já se tinham por tal forma habituado a vestir sua ironia de afabilidade e galanteria, que vendavam completamente a intenção. Muitas vezes D. Firmina aproximava-se no meio de uma dessas escaramuças de espírito e supunha ao ouvi-los que estavam arrulando finezas e ternuras, quando eles se crivavam de alusões pungentes. A moça hesitou um instante; mas fitando de chofre o olhar no semblante do marido, perguntou-lhe: - Que fez dos objetos que estavam no toucador? Seixas conteve um assomo de nobre ressentimento e sorriu-se com desdém: - Não tenha susto; estão fechados nas gavetas, intactos como os deixou. Pensava talvez que parassem em alguma casa de penhor? - Estes objetos lhe pertencem, pode dispor deles como lhe aprouver, sem dar contas disso a ninguém. Era a resposta que supunha receber e eu não teria que replicar-lhe, pois reconheço o seu direito e o respeito. - Penhora-me com tamanha generosidade, disse Seixas sentindo o dardo da alusão. - Não se apresse em agradecer. Se respeito o seu direito de dispor livremente do que é seu, também por minha parte reclamo a garantia do que adquiri com o sacrifício de minha felicidade. Casei-me com o Sr. Fernando Rodrigues de Seixas, cavalheiro distinto, franco e liberal; e não com um avarento, pois é este o conceito em que o têm os criados, e brevemente toda a vizinhança, se não for a cidade inteira. Seixas escutara com uma calma forçada estas palavras da mulher, e replicou-lhe vivamente: - Há dias, a propósito do carro, agitou-se entre nós esta questão; volta agora o caso do toucador; e pode renovar-se a cada momento. O melhor pois é liquidá-la de uma vez. - Liquidemos. - Dê-me o braço, que ali vem D. Firmina. Aurélia passou a mão pelo braço de Seixas. Passeando ao longo de uns painéis de fúcsias de várias espécies e admirando as flores, tiveram eles esta conferência, que de certo nunca houve entre marido e mulher. - A senhora comprou um marido; tem pois o direito de exigir dele o respeito, a fidelidade, a convivência, todas as atenções e homenagens, que um homem deve à sua esposa. Até hoje... - Faltou-lhe mencionar uma, talvez por insignificante, o amor, atalhou Aurélia brincando com um cacho de fúcsias. - Estava subentendido. Há apenas uma reserva a fazer acerca da espécie desse produto. Suponha que a senhora não possuísse esta bela e opulenta madeixa, suntuoso diadema como não o tem nenhuma rainha, e que fizesse como as outras moças, que compram os coques, as tranças e os cachos. Não teria de certo a pretensão de que esses cabelos comprados lhe nascessem na cabeça, nem exigiria razoavelmente senão uns postiços. O amor que se vende é da mesma natureza desses postiços: frocos de lã, ou despojo alheio. - Oh! ninguém o sabe melhor do que eu, que espécie de amor é esse, que se usa na sociedade e que se compra e vende por uma transação mercantil, chamada casamento!.. O outro, aquele que eu sonhei outrora, esse bem sei que não o dá todo o ouro do mundo! Por ele, por um dia, por uma hora dessa bem-aventurança, sacrificaria não só a riqueza, que nada vale, porém minha vida, e creio que minha alma! Aurélia, no afogo destas palavras que lhe brotavam do seio agitado, retirara a mão do braço de Seixas; ao terminar voltara-se rapidamente para esconder a veemência do afeto que lhe incendiara o olhar e as faces. Seixas acompanhou este movimento com um gesto de profunda mágoa, que um instante confrangeu-lhe o semblante, mas logo passou; já ele estava ocupado em entrançar nos losangos do gradil verde alguns pâmpanos mais longos de madressilva, quando Aurélia aproximou-se. - Não faça caso destas puerilidades. São os últimos arrancos do passado. Cuidei que já estava morto de todo; ainda respira; mas em poucos dias nós o teremos enterrado. Talvez que então eu consiga ser a mulher que lhe convinha, uma de tantas que o mundo festeja e admira. - A senhora será o que lhe aprouver; de qualquer modo deve convir-me desde que não empobreça. Este sarcasmo chamou Aurélia à realidade de sua posição. - É verdade, esqueci-me que entre nós só há um vínculo. - Posso continuar? - Estou ouvindo-o. - As obrigações e respeitos que lhe devo como seu marido, ainda não me eximi de cumpri-los; e não me eximirei, qualquer que seja a humilhação, que eles me imponham. Aurélia sentiu uma estranha repulsão ao ouvir estas palavras; o rubor queimou-lhe as faces. - A senhora pretende também que não comprou um marido qualquer, e sim um marido elegante, de boa sociedade e maneiras distintas. Fazendo violência à minha modéstia, concordo. Tudo quanto for preciso para pavonear essa vaidade de mulher rica, eu o farei e o tenho feito. Salvas algumas modificações ligeiras, que a idade vai trazendo, sou o mesmo que era quando recebi sua proposta por intermédio de Lemos. Estarei enganado? Aurélia respondeu com um gesto de suprema indiferença. - Já vê que sou exato e escrupuloso na execução do contrato. Conceda-me ao menos este mérito. Vendi-lhe um marido; tem-no à sua disposição, como dona e senhora que é. O que porém não lhe vendi foi minha alma, meu caráter, a minha individualidade; porque essa não é dado ao homem alheá-la de si, e a senhora sabia perfeitamente que não podia jamais adquiri-la a preço d'ouro. - A preço de que então? - A nenhum preço, está visto, desde que o dinheiro não bastava. Se me der o capricho para fingir-me sóbrio, econômico, trabalhador, estou em meu pleno direito; ninguém pode proibir-me esta hipocrisia, nem impor-me certas prendas sociais, e obrigar-me a ser à força um glutão, um dissipador e um indolente. - Prendas que possuía quando solteiro. - Justamente, e que me granjearam a honra de ser distinguido pela senhora. - É por isso que desejo revivê-las. - Neste ponto sou livre, e a senhora não tem sobre mim o menor poder. O fausto de sua casa exige que tenha um palácio, mesa lauta, carros e cavalos de preço, que viva no meio do luxo e da grandeza. Não a contrario no mínimo detalhe; moro nessa casa, sento-me a essa mesa, entrarei nesses carros para acom-panhá-la; não serei nos esplêndidos salões um traste indigno de emparelhar com os outros móveis. Quanto ao mais, ter por exemplo, apetite para suas iguarias e prazer para suas festas, eis ao que não me obriguei. E porventura será defeito que rebaixe o homem de sua posição social, de seus méritos, o fastio ou o hábito de andar a pé? - Porventura, pergunto-lhe eu, será agradável a alguma senhora ter um marido que serve de tema à risota dos criados, e passa por trancar o sabonete? E veja quanto se desmandam, que já chegaram a meus ouvidos os chascos dessa gente. - Compreendo que se ofenda com isso o seu orgulho. Mas há um remédio; deixar que roubem esses objetos, ou dá-los sob qualquer pretexto, contanto que eu não me sirva deles. Aurélia fez um gesto de impaciência. - Não contesto-lhe o direito que pretende haver sobre o que chama sua alma e seu caráter. Ideou este meio engenhoso de contrariar-me; não lhe roubarei o prazer; mas se deseja saber o que penso... - Tenho até o maior empenho. Sua opinião é para mim como um farol; indica-me o parcel. - O que não impediu seu naufrágio. Mas não gastemos o tempo em epigramas. Que necessidades temos nós destes trocadilhos de palavras, quando somos a sátira viva um do outro? Há neste mundo certos pecadores que depois de obtidos os meios de gozar da vida, arranjam umas duas virtudes de aparato, com que negociam a absolvição e se dispensam assim de restituir a alma de Deus. O aspecto de Seixas denunciava a cólera que sublevava-se em sua alma e não tardava a prorromper. Mas desta vez ainda conseguiu domar a revolta de seus brios. - Acabe. - Já tinha acabado. Mas, para satisfazê-lo, aí vai o ponto do i; sua economia e sobriedade são do número daquelas virtudes oficiais dos pecadores timoratos. - A senhora tem uma sagacidade prodigiosa! Bem mostra que é sobrinha do Sr. Lemos. Aurélia que seguira adiante voltou-se como se uma víbora a tivesse picado no calcanhar. Tão eloqüente foi o assomo de dignidade ofendida que vibrou a fronte da formosa moça, e tal o império de seu olhar de rainha, que Seixas arrependeu-se. - Desculpe!... disse ele com brandura. Sua ironia às vezes é implacável! Aurélia não respondeu. Adiantando-se, entrou em casa e recolheu-se ao toucador. Era a primeira noite depois de casados, que ela não voltava do jardim na companhia e pelo braço do marido. VI Fazia um luar magnífico. Seixas conversava com D. Firmina na calçada de mármore de frente, que a folhagem das árvores cobria de sombra. À direita do marido estava Aurélia reclinada em uma cadeira mais baixa de encosto derreado, cômodo preguiceiro para o corpo e o espírito que deseja cismar. Desde a tarde da explicação relativa ao toucador, as relações dos dous companheiros dessa grilheta matrimonial se tinham modificado. Como se houvessem naquela ocasião exaurido toda a dose de fel e acrimônia, acumulada nesse primeiro mês de casados; desde o dia seguinte suas palavras correspondendo à amenidade e apuro das maneiras, perderam a ponta de ironia, de que anteriormente vinham sempre armadas, como as vespas de seu dardo sutil e virulento. Conversaram menos de si, falando sobre cousas indiferentes ou banais, acontecia-lhes durante muitas horas esquecerem-se da fatalidade que os tinha unido em uma eterna colisão para se dilacerarem mutuamente a alma. Seixas descrevia naquele momento a D. Firmina o lindo poema de Byron, Parisina. O tema da conversa fora trazido por um trecho da ópera que Aurélia tocara antes de vir sentar-se na calçada. Depois do poema ocupou-se Fernando com o poeta. Ele tinha saudade dessas brilhantes fantasias, que outrora haviam embalado os sonhos mais queridos de sua juventude. A imaginação, como a borboleta que o frio entorpeceu e desfralda as asas ao primeiro raio do Sol, doudejava por essas flores d'alma. Não falava para D. Firmina, que talvez não o compreendia, nem para Aurélia que certamente não o escutava. Era para si mesmo que expandia as abundâncias do espírito; o ouvinte não passava de um pretexto para esse monólogo. Às vezes repetia as traduções que havia feito das poesias soltas do bardo inglês; essas jóias literárias, vestidas com esmero, tomavam maior realce na doce língua fluminense, e nos lábios de Seixas que as recitava como um trovador. Aurélia a princípio entregara-se ao encanto daquela noite brasileira, que lhe parecia um sonho de sua alma pintado no azul diáfano do céu. Umas vezes ela refugiava-se no mais espesso da sombra, como se receasse que os raios indiscretos da Lua viessem espiar em seus olhos os recônditos pensamentos. Daí, da escuridão em que se embuçava, entretinha-se a ver as árvores e os edifícios flutuando na claridade que os inundava como um lago sereno. Outras vezes inclinava a medo e lentamente a cabeça até encontrar a faixa de luar que passava entre duas folhas de palmeira, e vinha esbater-se na parede. Então essa veia de luz caía-lhe sobre a fronte e banhava-a de um cândido esplendor. Ficava um instante nessa posição com os olhos engolfados no luar, e os lábios entreabertos para beberem os eflúvios celestes. Depois, saciada de luz, recolhia-se outra vez à sombra; e como a árvore que desabrocha em flores aos raios de sol, sua alma transformava os fulgores da noite em sonhos. Ali perto recendiam os corimbos de resedá, balouçados pela brisa, e foi através desse enlevo de luz e fragrância, que a voz sonora de Seixas penetrou nas cismas de Aurélia e enleou-se nelas, de modo que a moça imaginava escutar não a conversa do marido, mas uma fala de seu sonho. Para ouvir apoiara-se ao braço da cadeira e insensivelmente a cabeça descaindo reclinou sobre a espádua de Seixas com um movimento de graciosa languidez. - Um dos mais lindos poemetos de Byron é o Corsário; dizia Seixas. - Conte! murmurou-lhe ao ouvido a moça com a voz que teriam sílfides se falassem. Fernando cedia nesse instante a uma suavíssima influência, contra a qual desejava reagir, mas faltava-lhe o ânimo. A pressão dessa formosa cabeça produzia nele o efeito do toque mágico de uma fada; presa do encanto não se lembrou mais quem era e onde estava. A palavra fluía-lhe dos lábios trêmula de emoção, mas rica, inspirada, colorida. Não contou o poema do bardo inglês; bordou outro poema sobre a mesma teia, e quem o ouvisse naquele instante, acharia frio e pálido o original, ante o plágio eloqüente. É que neste havia uma alma a palpitar, enquanto que no outro apenas restam os cantos mudos do gênio que passou. - O senhor deve traduzir este poema. É tão bonito! disse D. Firmina. - Já não tenho tempo, respondeu Seixas; nem gosto. Sou empregado público e nada mais. - Agora não precisa do emprego; está rico. - Nem tanto como pensa. Aurélia levantou-se tão arrebatadamente, que pareceu repelir o braço do marido, no qual pouco antes se apoiava. - Tem razão; não traduza Byron, não. O poeta da dúvida e do cepticismo, só o podem compreender aqueles que sofrem dessa enfermidade cruel, verdadeiro marasmo do coração. Para nós, os felizes, é um insípido visionário. Depois de ter lançado envoltas em um riso sardônico estas palavras a Seixas, a moça afastou-se da calçada. Mal entrou na zona de luz que prateava a fina areia, teve um calafrio. Esse esplêndido luar, onda suave, em que ela banhava-se voluptuosamente momentos antes, a transpassara como um lençol de gelo. Voltou precipitadamente e entrou na sala, onde apenas havia a frouxa claridade de dois bicos de gás em lamparina. Fora ela mesma quem dispusera assim, para que a luz artificial não perturbasse a festa da natureza. Agora batia o tímpano, chamando o criado para fazer inteiramente o contrário. Os lustres acesos entornaram as torrentes deslumbrantes do gás, que expeliram da sala os níveos reflexos do luar. - Pretendem ficar aí toda noite? perguntou Aurélia. - Estávamos gozando do luar, disse D. Firmina entrando com Seixas. - Há quem admire as noites de luar! Eu acho-as insuportáveis. O espírito afoga-se nesse mar de azul, como o infeliz que se debate no oceano. Para mim não há céu, nem campo, que valha estas noites de sala, cheias de conforto, de calor e de luz em que nos sentimos viver. Aqui não há risco de afogar-se o pensa-mento. - Não; mas asfixia-se! observou Fernando. - Antes isso. Aurélia sentou-se à mesa de mosaico, voltando as costas ao jardim para não ver a formosa noite que lhe caíra no desagra-do. Como porém no espelho fronteiro reproduzia-se com a cin-tilação do cristal uma nesga do jardim, onde a claridade argenti-na da Lua parecia coalhar-se nos lírios e cactos, a moça chamou novamente o criado e ordenou-lhe que fechasse a janela pela qual entrava aquele importuno bosquejo do soberbo painel da noite. Havia em cima da mesa uma caixa de jogo, donde Aurélia tirou um baralho, com que se entreteve a fazer sortes. - Vamos jogar? disse dirigindo-se ao marido. Este tomou lugar na mesa em frente a Aurélia, que entregou-lhe o baralho e tirou outro da caixa. - O écarté. Seixas fez um gesto de assentimento ou obediência, preparadas as cartas para o jogo e tocando-lhe começar deu o baralho a partir. - Dez mil-réis a partida! disse Aurélia vibrando o tím-pano. Seixas procurou com os olhos D. Firmina, que se recostara à janela e não prestava atenção ao jogo. A esse tempo entrou o criado. - Luísa que traga minha carteira. Podemos continuar. - Perdão, contestou Seixas a meia voz. Eu não jogo a dinheiro. - Por quê? - Não gosto. - Tem medo de perder? - É uma das razões. - Eu lhe empresto. - Também já perdi este mau costume de contar com o dinheiro alheio, tornou Seixas sorrindo e frisando as palavras. Depois que sou rico, só gasto do meu. - Não lhe mereço esta fineza? retorquiu Aurélia acerando também o sorriso. Seja ao menos esta noite jogador e perdulário para satisfazer o meu capricho. A moça recebeu a carteira da mucama; e tirou dela uma libra esterlina, que deitou sobre a mesa. - Não se tenta? - É muito pouco! tornou Seixas com um riso amargurado. Este riso incomodou Aurélia, que ocultou a moeda e a carteira. Ainda esteve algum tempo baralhando as cartas distraída; então escaparam-lhe palavras soltas que pareciam de um monólogo. - Dizem que a água no vinho faz de duas bebidas excelentes uma péssima. O mesmo acontece à mistura da virtude com o vício. Torna o homem um ente híbrido. Nem bom, nem mau. Nem digno de ser amado; nem tão vil, que se lhe evite o contágio. Compreendo o que deve sentir uma mulher... o que sentiu uma amiga minha, quando conheceu que amava um desses homens equívocos, produtos da sociedade moderna. - Essa amiga sua, que suponho conhecer, talvez preferisse que o marido fosse em vez de algum desses equívocos, pura e simplesmente um galé? perguntou Seixas. - De certo. Se o marido fosse um galé, ela quebraria imediatamente a grilheta que a prendesse a ele, e se afastaria com a morte n'alma. Mas eu... - A senhora? Interrompeu o marido vendo-a hesitar. As pálpebras franjadas de Aurélia ergueram-se desvendando os grandes olhos pardos que deslumbraram Seixas. Seu colo se distendera com o movimento que fez para aproximar-se, e a voz soou vibrante e profunda. - Eu?... Não me importaria que ele fosse Lúcifer, contanto que tivesse o poder de iludir-me até o fim, e convencer-me de sua paixão e inebriar-me dela. Mas adorar um ídolo para vê-lo a todo o instante transformar-se em uma cousa que nos escarnece e nos repele... É um suplício de Tântalo, mais cruel do que o da sede e da fome. Aurélia, proferidas estas palavras, ergueu-se e atravessando a sala entrou em seu aposento. - Onde está Aurélia? perguntou D. Firmina quando saiu da janela. - Já recolheu-se. A noite estava fresca. O sereno fez-lhe mal. Boa noite. O outro dia foi um domingo. Ao jantar Aurélia disse ao marido: - Há mais de um mês que estamos casados. Carecemos pagar nossas visitas. - Quando quiser. - Começaremos amanhã. Ao meio-dia: não é boa hora? - Não seria melhor à tarde? consultou o marido. - Causa-lhe transtorno de manhã? - Não desejo faltar à repartição. - Pois então há de ser mesmo de manhã; retorquiu a moça a sorrir. Não consinto nessa falta de galanteria. Não acha, D. Firmina? Preferir o emprego à minha companhia? - Decerto! confirmou a viúva. Seixas nada opôs. Era seu dever acompanhar a mulher quando esta quisesse sair, e ele estava resolvido a cumprir escrupulosamente todas as obrigações. VII Seixas escreveu a seu chefe uma carta justificando sua ausência com um motivo grave, e remetendo-lhe alguns papéis que havia despachado na véspera. Ao entrar na saleta, encontrou Aurélia que examinava o -tempo. - Está um dia tão quente!... O melhor talvez fosse adiar nossas visitas. Que diz? - Decida, porque ainda tenho tempo de ir à secretaria. - Vamos almoçar. Resolverei depois. Quando se ergueram da mesa, ainda Aurélia não tinha decidido. Seixas compreendeu que a intenção da mulher era con-trariá-lo, no que ela achava um prazer especial, e resignou-se a perder o dia. À uma hora, a moça chegou-se a ele: - Jantaremos hoje mais cedo e sairemos às cinco horas. Não lhe convém assim? - Convém-me qualquer hora que escolher; respondeu Seixas. - Talvez não goste de sair de tarde. Então ficará para amanhã às onze horas. - Pois seja amanhã. - Faltará outra vez à repartição? - Sendo preciso. - Não; sairemos esta tarde. - Aurélia chamou o criado e deu suas ordens. Como havia determinado, apressou-se o jantar; e às cinco horas descia ela a escadaria de seu palacete em cujo pórtico a esperava a elegante vitória tirada por uma parelha de cavalos do Cabo. A moça trajava um vestido de gorgorão azul entretecido de fios de prata, que dava à sua tez pura tons suaves e diáfanos. O movimento com que, apoiando sutilmente a ponta da botina no estribo, ergueu-se do chão para reclinar-se no acolchoado amarelo da carruagem, lembrava o surto da borboleta, que agita as grandes asas e se aninha no cálix de uma flor. O vestido de Aurélia encheu a carruagem e submergiu o marido; o que ainda lhe aparecia do semblante e do busto ficava inteiramente ofuscado pela deslumbrante beleza da moça. Ninguém o via; todos os cumprimentos, todos os olhares, eram para a rainha, que surgia depois de seu passageiro retiro. O carro parou em diversas casas, indicadas na nota que o cocheiro recebera. Seixas oferecia a mão à mulher para ajudá-la a apear-se, e a conduzia pelo braço à escada, que ela subia só, pois precisava de ambas as mãos para nadar nesse dilúvio de sedas, rendas e jóias, que atualmente compõe o mundus da -mulher. Aí como na rua, todas as atenções eram para Aurélia, que as senhoras rodeavam pressurosas, e os homens fascinados por sua graça. Seixas apenas recebia um pálido reflexo dessa consideração, quanto exigia a estrita urbanidade. Houve casa, onde no afã de acolher a mulher, o deixaram atrás, desapercebido como um criado. Em outras circunstâncias, aquela anulação de sua individua-lidade, bem pode ser que não o incomodasse. Talvez se reparasse nela, fosse para desvanecer-se de ser o preferido dessa formosa mulher, cercada da admiração geral e disputada por tantos admiradores. Todo esse culto que lhe prestava a sociedade, não seriam a seus olhos senão o tributo a ele oferecido pelo amor de sua mulher. Mas as condições em que se achava, deviam mudar completamente a disposição de seu ânimo. Quanto mais se elevava a mulher, a quem não o prendia o amor e somente uma obrigação pecuniária, mais rebaixado sentia-se ele. Exagerava sua posição; chegava a comparar-se a um acessório ou adereço da senhora. Não tinha dito Aurélia naquela noite cruel, que o marido era um traste indispensável à mulher honesta e que o comprara para esse fim? Ela tinha razão. Ali, naquele carro, ou nas salas onde entravam, parecia-lhe que sua posição e sua importância eram a mesma, senão menor, do que tinha o leque, a peliça, as jóias, o carro, no trajo e luxo de Aurélia. Quando ele oferecia a mão à mulher para apear-se, ou levava no braço a manta de caxemira, considerava-se a igual do cocheiro que dirigia o carro e do lacaio que abria o estribo. A única diferença era serem aqueles serviços dos que os cavalheiros geralmente prestam às senhoras, e que só em falta desses recebem elas de um criado mais graduado. Uma das últimas visitas foi à família de Lísia Soares, que se dizia a amiga mais íntima de Aurélia, quando solteira. Depois dos cumprimentos e felicitações, quando a conversa vacilava à espera de um tema, a Lísia que era maliciosa lembrou-se de soprar uma faísca. Não podia haver para ela maior prazer do que o de picar Aurélia cujo espírito muitas vezes a tinha beliscado. - Lembra-se, Aurélia, quando você fazia a cotação de seus pretendentes? Disse a maligna alteando a voz para ser bem ouvida. - Se me lembro! Perfeitamente! respondeu Aurélia sor-rindo. - E o que me disse uma noite a respeito do Alfredo Moreira? Que valia quando muito cem contos de réis; mas que você era muito rica para pagar um marido de maior preço. - E não disse a verdade? - Então o Sr. Seixas?... interrompeu Lísia com uma reticência impertinente que estancou-lhe a palavra nos lábios, para borrifar a malícia no sorriso e no olhar. - Pergunte-lhe! disse Aurélia voltando-se para o marido. Nunca, depois que se achava sob o jugo dessa mulher, ou antes da fatalidade que o submetia a seus caprichos, nunca Seixas precisou tanto da resignação de que se revestira para não sucumbir à vergonha de semelhante degradação. O primeiro abalo produzido pelo diálogo das duas amigas foi terrível; e não o perceberam, porque a atenção geral convergia para Aurélia nesse instante. Dominou-se porém; quando os olhares acompanhando o gesto da mulher voltaram-se para ele, encontraram-no calmo, naturalmente grave e cortês, embora ainda lhe restasse uma ligeira palidez em que ninguém reparou. - Então, Sr. Seixas, é certo? insistiu Lísia. - O quê, minha senhora? perguntou o moço por sua vez e com a maior polidez. - O que disse Aurélia. - Não vês que é um gracejo! observou a mãe de Lísia. - Ela foi sempre assim, amiga de brincar! disse uma -prima. - Não querem acreditar!... tornou Aurélia com um modo indiferente. - É sério, Sr. Seixas? perguntou Lísia novamente. - Responda! disse Aurélia ao marido, sorrindo-se. - Da parte de minha mulher não sei, e só ela poderá dizer-lhe, D. Lísia. Quanto a mim asseguro-lhe que me casei unicamente pelo dote de cem contos de réis que recebi. Devo crer que minha mulher mudou da idéia em que estava de pagar um marido de maior preço. A sisudez com que Seixas pronunciou estas palavras, e porventura também certa aspereza do timbre que percebia-se-lhe na fala harmoniosa, como sente-se a aspa de ferro sob o estofo de cetim, deixaram as pessoas presentes perplexas acerca do sentido e crédito que deviam dar a semelhante asseveração. Nisto ressoaram os trilos cristalinos da risada de Aurélia. - Eis o que você queria, Lísia, era fazer desconfiar Fernando. Quer saber se eu o comprei, e por que preço? Não faço mistério disso; comprei-o, e muito caro; custou-me mais, muito mais de um milhão; e paguei-o, não em ouro, mas em outra moeda de maior valia. Custou-me o coração; por isso já não o tenho! Estas palavras e a expressão que palpitava nelas convenceram a todos que Aurélia estivera efetivamente a gracejar acerca de seu casamento. A resposta à Lísia não fora senão um disfarce para provocar aquela confissão inconveniente da paixão com que se estremeciam ela e o marido. Assim, quando retiraram-se as visitas, o tema da conversa foi o desfrute dos dois noivos, que depois de um mês de casados andavam pela rua requebrando-se como dois pombinhos namorados. Lísia asseverava ter visto Aurélia de tal modo enleada ao braço do marido, que este não podia andar. Entretanto rodava o carro pelo Catete, e Aurélia balançando-se ao brando movimento das almofadas, parecia ter completamente esquecido Seixas sentado a seu lado, quando este dirigiu-lhe a palavra. - Desde que estamos casados, uma só vez não inquiri de suas intenções. Respeito-as, como é meu dever, e conformo-me com elas quanto posso, por mais estranhas que me pareçam. Mas para satisfazer suas vontades é preciso pelo menos conhecê-las, embora não as compreenda. Aurélia voltara o rosto para o marido. Como já não receava ser vista por causa do lusco-fusco, deixou que seu semblante tomasse a expressão de soberba desdenhosa, que o vestia nesses momentos de surda irritação. - Que pretende com este prólogo? - A princípio quis-me parecer que desejava ocultar dos estranhos a realidade de nossa posição. Confesso que nunca pude atinar com o motivo dessa singularidade. Criar delibe-ra-da-mente uma situação, para ter o gosto de a negar a todo ins-tante... - É absurdo?... Não é?... Também me parece a mim. - Não perscruto seu pensamento. A senhora devia ter uma razão, que ignoro. - Como eu. - Importa-me, porém, saber se mudou de propósito, como indica a cena que acaba de representar, e se resolveu dora em diante fazer escândalo, do que ontem fazia mistério. - E para que deseja saber isso? - Já o disse, para conformar-me à sua vontade e afinar-me pela mesma clave. O dueto será mais aplaudido. - Não duvido; mas eu é que não me casei para fazer de minha vida uma solfa de música. Serei leviana e inconseqüente; terei estes defeitos; mas o que não tenho, pode estar certo, é o talento do cálculo. Deixe-me com o meu gênio excêntrico. Agora, neste momento, sei eu porventura o que farei esta noite? Que extravagância me virá tentar? Como pois havia de formular um programa conjugal para nosso uso? Eu posso fazer de nossa união um mistério ou um escândalo, conforme o capricho. O senhor é que não tem esse direito. - Tanto como a senhora! Aurélia contestou com fria impassibilidade: - Engana-se. O Sr. Seixas não pode desacreditar meu marido e expô-lo à irrisão pública. - Mas a mulher do infeliz pode; tem esse direito. - O senhor deu-lho. - Não; use do termo: Vendi-lho! Aurélia não respondeu. Derreando o corpo nas almofadas, e voltando o rosto para ver o recorte das árvores e chácaras na tela iluminada do ocaso, deixou cair a conversa. Ainda fizeram algumas visitas. Eram mais de oito horas quando parou o carro à porta de casa. D. Firmina tinha saído. Aurélia queixou-se de fadiga, cortejou o marido e recolheu-se. Em seu quarto lembrou-se Seixas de algumas palavras que haviam escapado a Aurélia na conversação da tarde. - Sei eu acaso o que farei esta noite? Que extravagância me virá tentar? dissera a mulher; e ele sabia, que valor tinham em seus lábios essas frases enigmáticas. Desde a noite de luar e os devaneios poéticos sobre Byron que Aurélia mostrava uma irritabilidade contínua. Qual devia ser a resolução inspirada por essa febre de sua alma, já tão propensa aos caprichos e excentricidades? Esteve Seixas cogitando um momento sobre este ponto a fazer conjeturas. Fatigou-se, porém, da tarefa, e abandonou-a, pensando que não havia piores na posição intolerável em que se achava. Já não pensava naquilo, quando súbito atravessou-lhe o espírito uma idéia que o fez estremecer. Um impulso de curiosidade o dominou. Correu à porta que o separava da câmara nupcial e dos aposentos da mulher. Ergueu a mão para bater; começou o nome de Aurélia; mas não se animou a realizar o primeiro intento. Aplicou o ouvido a escutar. Reinava naquela parte da casa o mais profundo silêncio. Que fazer? Agitado pela idéia terrível que o assaltava, deu a esmo algumas voltas pelo aposento, numa perplexidade cruel. Seu olhar que não deixava a porta, notou um esguicho de luz no fundo do corredor escuro, e conheceu que saía pela greta da fechadura. Aproximou-se cautelosamente e sem rumor. Pelo recorte da chave, pôde ver na parede fronteira um quadro iluminado que se destacava no crepúsculo da câmara nupcial. Era o espelho colocado sobre a jardineira de mármore, que refletia obliquamente pela porta aberta uma faixa de outro gabinete. Essa zona abrangia um divã onde nesse instante destacava-se do brocado verde a estátua de Aurélia, deitada como o alto-relevo que outrora ornava as campas dos nobres. Envolvia o corpo da moça um roupão de cambraia, cujas pregas caíam sobre o tapete semelhantes aos borbotões da nívea espuma de uma cascata, e deixavam-lhe o talho debuxado sob a fina teia de -linho. Estava muito pálida e imóvel. Um dos braços descaía desfalecido pela borda do divã; tinha o outro suspenso até à moldura do recorte onde a mão se crispava, talvez no esforço de erguer o corpo. Havia na imobilidade dessa posição e em seu perfil alguma cousa de hirto que assustava. VIII Sucedem-se no procedimento de Aurélia atos inexplicáveis e tão contraditórios, que derrotam a perspicácia do mais profundo fisiologista. Convencido de que também o coração tem uma lógica, embora diferente da que rege o espírito, bem desejara o narrador deste episódio perscrutar a razão dos singulares movimentos que se produzem n'alma de Aurélia. Como porém não foi dotado com a lucidez precisa para o estudo dos fenômenos psicológicos, limita-se a referir o que sabe, deixando à sagacidade de cada um atinar com a verdadeira causa de impulsos tão encontrados. Remontemos pois o curso dessa nova existência de Aurélia até à noite de seu casamento, quando a exaltação que a animava durante a cena passada com Seixas, abatendo de repente, a deixou prostrada no tapete da câmara nupcial. Não foi propriamente um desmaio que a tomou, ou este não passou de breve síncope. Mas o resto da noite, ela o passou ali, sem forças nem resolução de erguer-se, em um torpor intenso, que se não lhe apagava de todo os espíritos, os sopitava em uma modorra pesada. Tinha a consciência de sua dor; sofria acerbamente; porém faltava-lhe naquele instante a lucidez para discriminar a causa de seu desespero e avaliar da situação que ela própria havia -criado. Pela madrugada o sono, embora agitado, trouxe um breve repouso à sua angústia. Dormiu cerca de uma hora, tendo por leito o chão, e com a cabeça apoiada nesse mesmo estrado, que devia servir de degrau à sua felicidade. A claridade da manhã que filtrava pela cassa das cortinas, despertou-a. Ergueu-se arrebatadamente e ao impulso de uma idéia terrível, que atravessara como um raio de luz a sombra confusa de suas reminiscências. Correu à porta por onde saíra Seixas, e escutou presa de viva inquietação. Por vezes levou a mão à chave, e retirou-a assustada. Volveu a esmo os passos rápidos pela casa; afinal aproximou-se da janela, sem intenção, automaticamente. Foi nessa ocasião que viu Seixas atravessar o jardim furtivamente e entrar em casa. Ainda reinava o silêncio por toda essa parte da habitação, de modo que ela pôde ouvir o leve rumor dos passos do marido no próximo aposento. Um riso de acre desprezo crispou-lhe os lábios. - É um cobarde! Depois do que se havia passado entre ambos, na noite de seu casamento, pensava Aurélia, que só havia para Seixas dous meios de quebrar o jugo humilhante a que o tinha submetido. Não lhe restava senão matá-la a ela, ou matar-se a si. Para uma dessas duas soluções se tinha a moça preparado. É certo que às vezes seu coração afagava uma esperança impossível. Se o homem a quem amava, se ajoelhasse a seus pés e lhe suplicasse o perdão, teria ela forças para resistir e salvar a dignidade de seu amor? Por este lance não teve ela de passar. Às suas primeiras palavras, Seixas retraíra-se, para ostentar depois uma imprudência, que ela jamais podia esperar, e que produziu em sua alma indizível horror. O laço que a unia àquele homem tornou-se uma abjeção, quase uma infâmia. Entretanto, ao expeli-lo de sua presença, ainda esperava que as palavras proferidas pelo marido fossem apenas uma ironia amarga. Não concebia que tivesse amado um ente tão depravado e vil. O cinismo que pouco antes a indignara, devia ter uma reação. Foi quando viu Seixas pela manhã que de todo acabou de convencer-se da miséria do indivíduo. Então operou-se em sua alma uma revolução, na qual soçobraram todos os sentimentos bons e afetuosos, ficando à tona unicamente os instintos agressivos e malignos que formam a lia do coração. Quando Aurélia deliberara o casamento que veio a realizar, não se inspirou em um cálculo de vingança. Sua idéia, a que afagava e lhe sorria, era patentear a Seixas a imensidade da paixão que ele não soubera compreender, sacrificando sua liberdade e todas as esperanças para unir-se a um homem a quem não amava e nem podia amar, desnudava a seus olhos o ermo sáfaro em que lhe ficara a alma, depois da perda desse amor, que era toda sua existência. Esse casamento póstumo de um amor extinto não era senão esplêndido funeral, em face do qual Seixas devia sentir-se mesquinho e ridículo, como em face da essa o soberbo compenetra-se da miséria humana. O sentimento que animava Aurélia podia chamar-se orgulho, mas não vingança. Era antes pela exaltação de seu amor que ela ansiava, do que pela humilhação de Seixas, embora essa fosse indispensável ao efeito desejado. Não sentia ódio pelo homem que a iludira; revoltava-se contra a decepção, e queria vencê-la, subjugá-la, obrigando esse coração frio que não lhe retribuía o afeto, a admirá-la no esplendor de sua paixão. Mas naquele instante, recordando as palavras que Seixas proferira poucas horas antes; vendo-o tranqüilo e disposto a aceitar como natural a terrível situação; pensando no desbrio com que esse homem sujeitava-se a uma degradação de todos os instantes, Aurélia tivera um verdadeiro ímpeto de vingança. Seixas queria afrontá-la com seu desgarro impudente. Pois bem; ela aceitava o desafio; se esse infeliz não estava completamente desamparado dos últimos resquícios do amor-próprio e da vergonha, ela propunha-se a pungi-lo com o seu mais virulento sarcasmo. A menos que a alma não estivesse morta, sentiria o estigma do ferro em brasa. Foi nestas disposições que Aurélia vestiu-se para o almoço; e nessas disposições conservava-se ainda na tarde em que saíra com o marido às visitas. Todavia, quando no dia seguinte ao casamento, sentada na cadeira de balanço, viu entrar Seixas na sala de jantar, sua resolução vacilou. O aspecto nobre e distinto do mancebo, a elegância natural de seu gesto, recobraram o prestígio que esses dotes nunca deixam de exercer em espíritos elevados, e a que o dela estava já afeito. Não a abandonou o pensamento da vingança; mas o desabrimento e a ira excitados pela indignação da véspera, revestiram a forma cortês e o tom delicado, que raro e só em um instante de violento abalo desamparam as pessoas de fina educação. Nas alternativas desse desejo de vingança a miúdo contra-riado pelos generosos impulsos de sua alma, se escoara o primeiro mês depois do casamento. Se abandonando-se à irritação íntima que exacerbava-lhe o espírito, deleitava-se em flagelar com o seu implacável sarcasmo a dignidade do marido; quando recolhia-se depois de uma cena destas, era para desafogar o pranto e soluços que intumesciam-lhe o seio. Então reconhecia que a vítima de sua ira não fora o homem a quem detestava, mas seu próprio coração, que havia adorado esse ente, indigno de tão santo afeto. Se fatigada desse constante orgasmo d'alma, sempre crispada pelo escárnio, restituía-se insensivelmente à sua índole meiga, as relações com o marido tomavam uma expressão afetuosa;- de repente a invadia um gelo mortal, e ela estremecia espavorida com a idéia de pertencer a semelhante homem. Assim chegou Aurélia àquela noite de luar, em que Seixas falava de poesia, e ela escutava reclinada a seu braço no enlevo de que a arrancara dolorosamente uma palavra do marido. Quando a sós consigo pensou neste incidente, encheu-se de terror. Houve um instante, rápido embora, no qual chegou a lamentar que Seixas não tivesse conseguido enganá-la nessa ocasião adormecendo ou antes cegando-lhe os brios. Quando se dissipasse essa ilusão, seria tarde, e ela pertenceria irrevo-ga-velmente ao marido. Este sentimento, que apenas pronunciado ela repeliu com todas as forças de sua alma, deixou-lhe contudo um desgosto profundo, acompanhado do pânico de semelhantes alucinações. Daí a irritabilidade que desde então a possuía, e que tocara ao auge nessa tarde das visitas. Entretanto em seu toucador, Aurélia tinha febre: febre da paixão que a abrasara. Abriu todas as portas e janelas, atirou-se vestida como estava sobre o divã, e ali ficou imóvel, como a vira Seixas pela broca da fechadura. Assustado com essa imobilidade, o marido ia bater, quando a mucama atravessou por diante do quadro iluminado, o qual apagou-se de repente. Fechara-se a porta do toucador, refletida pelo espelho. No dia seguinte Aurélia deixou-se ficar em seu aposento toda a manhã. Voltando da repartição, Seixas encontrou-a pálida e abatida. Ao jantar foi D. Firmina quem fez os gastos da conversação. Na véspera a viúva passara a noite em uma casa da vizinhança, onde havia reunião semanal. Acertou falar-se no Abreu, que di-ziam ter caído na miséria. Por essa ocasião recordaram-se todas as extravagâncias e prodigalidades, com que o rapaz havia esbanjado em pouco mais de ano, a avultada herança deixada pelo pai. D. Firmina repetindo o que ouvira lamentava a sorte do Abreu que sacrificara tão bonito futuro. Revestindo-se dessa moral severa, que em geral se cultiva para uso alheio e não para o próprio gasto, acusava o rapaz com excessivo rigor. - A culpa não é dele, D. Firmina, observou Aurélia voltando de sua distração. - De quem mais pode ser? perguntou a viúva. - De quem o fez rico, não o tendo educado para a riqueza. O ouro desprende de si não sei que miasmas que produzem febre, e causam vertigens e delírios. É necessário ter um espírito muito forte, para resistir a essa infecção; ou então possuir algum santo afeto, que o preserve do veneno, sem o que sucumbe-se infalivelmente. - Quer dizer que a riqueza é um mal, Aurélia? - Não é um mal; muitas vezes torna-se um bem; mas em todo o caso é um perigo. Aqueles que se exercitam em jogar as armas, pensam que tudo se decide pela força. O mesmo acontece com o dinheiro. Quem o possui em abundância, persuade-se que tudo se compra. Tinham acabado de jantar. Aurélia ergueu-se da mesa e entretinha-se em dar aos canários as migalhas de pão, que esfarelava na palma da mão. Entretanto, Seixas acendera o charuto e seguia distraído pela rua que serpeando entre os tabuleiros de margaridas e os tapetes de relva, ia sumir-se em um bosque de palmeiras. O mancebo recordava-se das cenas da véspera, cotejava-as com as palavras que pouco antes haviam escapado a Aurélia, e buscava a explicação do enigma. Interrompeu-o a voz da moça que achava-se a seu lado. - Este passeio todas as tardes já deve aborrecê-lo. Por que não sai a cavalo? Deve distrair-se. Aurélia falava brincando com as flores para evitar que seu olhar encontrasse o de Seixas. - Sua companhia não me pode aborrecer nunca. - Sempre, torna-se monótona. - Demais é o meu dever, tornou Seixas frisando a palavra. Aurélia afastou-se; deu alguns passos, esteve reparando nas flores escarlates de uma trepadeira a que chamam brincos-de-dama, e tendo-se firmado na resolução que a preocupava, tornou para o marido. - Nossos destinos estão ligados para sempre. A sorte recusou-me a felicidade que sonhei. Tive este capricho que nenhuma outra o possuiria, enquanto eu viva. Mas não pretendo condená-lo ao suplício desta existência, que vivemos há mais de um mês. Não o retenho; é livre; disponha de seu tempo como lhe aprouver, não tem que dar-me contas. A moça calou-se esperando uma resposta. - A senhora deseja ficar só? perguntou Seixas. Ordene, que eu me retiro, agora como em qualquer outra ocasião. - Não me compreendeu. Há um meio de aliviar-lhe o peso dessa cadeia que nos prende fatalmente e de poupar-lhe as constantes explosões de meu gênio excêntrico. É o divórcio que lhe ofereço. - O divórcio? exclamou Seixas com vivacidade. - Pode tratar dele quando quiser, respondeu Aurélia com um tom firme e afastou-se. IX Seixas surpreso e agitado pela proposição da moça, refletiu um momento. O resultado dessa reflexão foi aproximar-se da mulher, ocupada nesse momento a ver os peixinhos vermelhos do tanque fervilharem à tona d'água para devorar os bocados de um jambo com que ela os tentava. - Estes peixes agora a divertem; disse Fernando. Se amanhã a aborrecerem, mandará que os deitem fora, e que os deixem morrer à fome? A moça ergueu para o marido os olhos cheios de surpresa. - Talvez nunca lhe acontecesse refletir sobre este problema social, continuou Fernando. O senhor tem o direito de despedir o cativo, quando lhe aprouver? - Creio que ninguém porá isso em dúvida, respondeu Aurélia. - Então entende que depois de privar-se um homem de sua liberdade, de o rebaixar ante a própria consciência, de o haver transformado em um instrumento, é lícito, a pretexto de alforria, abandonar essa criatura a quem seqüestraram da sociedade? Eu penso o contrário. - Mas que relação tem isso?... - Toda. A senhora fez-me seu marido; não me resta outra missão neste mundo; desde que impôs-me esse destino sacrificou meu futuro, não tem o direito de negar-me o que paguei tão caro, pois o paguei a preço de minha liberdade. - Essa liberdade, eu a restituo. - E pode restituir-me com ela o que perdi alienando-a? - Receia talvez o escândalo que produzirá o divórcio. Não há necessidade de publicarmos nossa resolução; podemos viver inteiramente estranhos um ao outro na mesma cidade, e até na mesma casa. Se for preciso, temos o pretexto das viagens por moléstia, da mudança de clima, do passeio à Europa. - A senhora fará o que for de sua vontade. A minha obrigação é obedecer-lhe, como seu servo, contanto que não lhe falte com o marido que a senhora comprou. Aurélia fitou no semblante de Seixas um olhar soberano: - Acredita que eu possa mudar de sentimentos para com o senhor? - Não tenha esse receio. Se eu não estivesse convencido que o amor entre nós é impossível, não estaria aqui neste momento. Estranho sorriso iluminou a fronte de Aurélia, que vibrou com um gesto de sublime altivez. - Qual é então o motivo por que não aceita o que lhe ofereço? - O que a senhora me oferece custou-lhe cem contos de réis, e receber esmolas desse valor é roubar ao pródigo que as deita fora. - Como quiser! disse Aurélia desdenhosamente. O senhor pensa decerto que sua presença me incomoda, e por isso lhe sorri a idéia de impô-la como uma contrariedade. Engana-se; pode ficar; não era por mim, mas por si mesmo que oferecia-lhe a separação. Rejeita-a? Melhor; não poderá queixar-se pelo que venha a acontecer. Apesar da recusa de Seixas, suas relações com Aurélia tornaram-se desde aquela tarde mais esquivas. A moça já não caprichava como nas primeiras semanas em passar a maior parte do tempo na companhia do marido. Este de seu lado, receando tornar-se importuno, conservava-se arredio enquanto a mulher não manifestava o desejo de tê-lo perto de si. Dias houve em que não se viram. Seixas saía muito cedo para a repartição; Aurélia ia jantar com alguma amiga; só no outro dia às 4 horas da tarde se encontravam de novo. Essas tardes em que Fernando ficava sozinho em casa, pois D. Firmina acompanhava Aurélia, ele as aproveitava para ir ver a mãe, que ainda habitava na mesma casa da Rua do Hospício. Excitava reparo entre os conhecidos de D. Camila, que o filho a deixasse na vida obscura e necessitada, em vez de chamá-la para sua companhia, ou pelo menos de ajudá-la a passar com outra decência e abastança. D. Camila não se queixava; mas apesar de seus extremos por aquele filho, e da abnegação de sua ternura, tinha estranhado consigo, que Fernando depois de casado, não pensasse em dar às irmãs uma lembrança qualquer. Mui raras vezes aparecia Fernando em casa da mãe, e de passagem. Nisso não reparava D. Camila; embora lamentasse que a posição do filho e seus deveres sociais não lhe permitissem possuí-lo por mais tempo. Mariquinhas a princípio excitava a mãe para irem à casa de Seixas nas Laranjeiras e até para lá passarem um dia. A mãe desabituada à sociedade receava-se da crítica de Aurélia. Todavia essa razão não a demoveria se Fernando insistisse; porém ele ao contrário fez-se desentendido e desconversou aos primeiros rodeios da irmã. Não passou desapercebida a Aurélia essa esquivança da família do marido. Uma tarde em que Seixas recebeu à sua vista um bilhete de Nicota, ela o interpelou: - Sua família depois da noite de nosso casamento nunca mais voltou a esta casa? Será por meu respeito? - Não; o culpado sou eu que nunca lhes falei nisso. - E por quê? - Julgam-me feliz. Não quero roubar-lhes essa doce -ilusão. - Aqueles que nos visitam e que freqüentamos não andam iludidos? - São indiferentes. Olhos de mãe lêem n'alma do filho como em livro aberto; aquilo o que não vêem, adivinham. - Quer fazer uma aposta? - Sobre? - Sou capaz de enganá-la como tenho enganado a todos. - É possível; ela não é sua mãe. O bilhete de Nicota comunicava a Fernando o dia que fora marcado para seu casamento, o qual celebrou-se na seguinte semana, em um sábado conforme o uso geral. Seixas ocultou da mulher essa particularidade. Na tarde em que devia ter lugar o casamento, saiu de casa a pretexto de fazer uma visita a um ministro, e assistiu à cerimônia. Levara à irmã uma jóia; mas de valor insignificante para sua riqueza. Essa mesquinheza junta à circunstância de apresentar-se a pé, fizeram suspeitar às pessoas presentes que a imprevista opulência abalara o caráter de Seixas a ponto de transformá-lo de perdulário que era, em refinado avarento. Outro casamento efetuou-se por esse tempo! Foi o do Dr. Torquato Ribeiro com Adelaide Amaral. Dias antes, o noivo recebeu por intermédio de Lemos um recado de Aurélia, que pedia-lhe o seu recibo de cinqüenta mil-réis, pois chegara a ocasião de pagá-lo. Foi Ribeiro às Laranjeiras, cogitando na surpresa que a moça lhe preparava. - Aqui tem o que lhe devo; as três cifras são o presente de Adelaide. Ribeiro abriu o papel; era uma letra ao portador de cinqüenta contos passada pelo Banco do Brasil. Ele fez um gesto de recusa; a moça atalhou-o. - Não tem o direito de rejeitar. Foi o preço da minha felicidade. Meu tio garantiu ao Amaral que o senhor possuía este dinheiro, sem o que ele não consentiria em desfazer o casamento da filha com Fernando, e este não seria meu marido. - Como lhe havemos de pagar nunca tamanho benefício? disse o moço comovido. - Sendo feliz, respondeu Aurélia. - Basta-me ser tanto como a senhora. - Como eu? - Sim; não é tão feliz? - Muito; como não pode imaginar! Aurélia serviu de madrinha a Adelaide, e Seixas foi obrigado a assistir a esse casamento, que desdobrava-lhe por assim dizer diante dos olhos um passado a que ele em vão tentava subtrair-se. Ali estavam juntas, diante do altar, duas mulheres a quem ele traíra sucessivamente, e não arrebatado da paixão, mas seduzido pelo interesse. Quando absorto em suas cogitações, abandonava-se à melancolia daquelas reminiscências, Aurélia que se aproximara, murmurou-lhe ao ouvido: - Mostre-se alegre. Quero que todos, mas principalmente esta mulher, acreditem que sou feliz e muito. O senhor deve-me ao menos esta ridícula satisfação em troca do que roubou-me. Tomando o braço de Seixas, e reclinando-se com esse voluptuoso orgulho da mulher que se rende a um imenso amor, dirigiu-se à porta da igreja onde a esperava o seu carro. Nesse momento, como durante a noite em casa do Amaral, não houve quem não invejasse a felicidade do par formoso que Deus havia acumulado de todos os dons, de formosura, de graça, de mocidade, de amor, de saúde e de riqueza. Tinham tudo isto, e não passavam de dois infelizes! Essa festa alegre e aparatosa, ninguém imaginava que suplício era para essas duas almas, que estavam queimando-se nas luzes da sala e dilacerando-se nos sorrisos que desfolhavam dos lábios. No dia seguinte, domingo, Aurélia deixou-se ficar em seu aposento, e até quarta-feira não viu o marido. Nem D. Firmina, nem os fâmulos, desconfiaram do fato, embora suspeitassem de algum estremecimento entre os noivos. Como nessas ocasiões, o marido e a mulher encerravam-se cada um de seu lado; as pessoas da casa, ignorantes do interdito a que fora condenada a câmara nupcial, presumiam que eles se correspondessem por essa comunicação interior. Estas esquivanças de Aurélia repetiram-se muitas vezes daí em diante: Seixas percebeu que ela o evitava, e desconfiou que sua presença começasse a importuná-la. Não se enganava. Desde que a moça não achava mais em si a irritação e o sarcasmo, em que a princípio se deleitava seu coração, a aproximação do marido a oprimia. Seixas não a contrariava. Conservando-se em casa ao alcance da voz e ao aceno da mulher, poupava-lhe o desgosto de o ver. Entrava isso na resolução que havia tomado, mas não era sem grande esforço e luta acérrima, que obtinha de si permanecer ao lado dessa mulher para a qual se havia tornado, ele o sentia, verdadeiro flagelo. Uma razão poderosa o retinha, devemos supor, e tão forte que subjugava a todo o instante a revolta de seus brios, magoados pela aversão cheia de desdém da qual era alvo. Desse tempo data a agitação em que laborou ele à busca de um recurso para subtraí-lo à terrível colisão. Todas as idéias que lhe sugeria seu espírito alvoroçado, ele as aceitava com sofreguidão, para logo as rejeitar com desânimo. Afinal decidiu-se. Antes de ir à repartição procurou Lemos, com quem só de passagem se encontrara depois do casamento. O velho recebeu-o com o seu modo folgazão: - Que honraria, meu amigo! Esta pobre casa não o me-recia! - Tinha necessidade de falar-lhe! respondeu Seixas. O velhinho piscou os olhos. Ele adivinhava que o moço não o tinha procurado àquela hora, para fazer-lhe uma visita de cortesia. - Desejava consultá-lo, continuou Seixas hesitando. Consta-me que as apólices vão baixar consideravelmente, e que seria um bom negócio vendê-las neste momento para comprá-las mais tarde, talvez daqui a dous meses. - Não é mau; porém há outro melhor neste momento, disse Lemos. - Qual? - Vender libras esterlinas. - Não as possuo. - Isso não impede. - Não entendo. - Venda a entregar no fim do mês, pelo preço de 12$. Nesse tempo elas baixam a 10$ com certeza, e o senhor ganha em quinze dias sem despender um real, uns contos de réis que não fazem mal a ninguém. - Agora compreendo. Dez mil libras deixariam... - Vinte contos. - E se ao contrário subirem? - Perde a diferença. - Aí está o risco. - Só há um meio de ganhar sem risco; é o de não pagar. Seixas despediu-se, apesar das instâncias de Lemos, que desejava levá-lo à Praça do Comércio. Nesse mesmo dia encontrou Abreu que depois de ter esbanjado a herança, dera em jogador, e vivia segundo era fama, da banca. Pela conversa que tiveram os dous ficou o marido de Aurélia sabendo a rua e número de uma casa onde todas as noites havia reunião plena dos amantes da roleta. Nessa noite Seixas saiu furtivamente de casa, e chamando um tílburi dirigiu-se para a cidade. Quando porém transpunha o limiar da porta, por onde se penetrava na Cova do Caco, tomou tal horror, que deitou a fugir pela rua, e não parou senão em casa. X No pavimento térreo, ao lado esquerdo, havia na casa das Laranjeiras uma varanda de estilo campestre, decorada com palmeiras vivas e corbelhas de parasitas. Servia de sala de bilhar, e aí costumava Aurélia e o marido passarem a tarde, quando o tempo não convidava ao passeio no jardim. Aí foi Seixas encontrar dous grandes quadros, colocados nos respectivos cavaletes. Na tela viam-se os esboços de dous retratos, o de Aurélia, e o seu, que um pintor notável, êmulo de Vítor Meireles e Pedro Américo, havia delineado à vista de alguma fotografia, para retocá-lo em face dos modelos. Ao olhar interrogador do marido, Aurélia respondeu: - É um ornato indispensável à sala. - Julga que seja indispensável? Parecia-me ao contrário inconveniente reproduzir ainda que seja por esse modo, uma presença que tanto lhe deve importunar. - Não se tira retrato d'alma. Felizmente!... observou Aurélia com o misterioso sorriso que desde certo tempo acompanhava essas palavras de sentido recôndito. Seixas prestou-se passivamente ao papel de modelo. As sessões à tarde tinham ficado reservadas para ele a fim de não estorvar-lhe o trabalho da repartição. Aurélia retirou-se, deixando-o em plena liberdade. No dia seguinte, pela manhã, quando o pintor voltou para trabalhar em seu retrato, a moça antes de tomar posição fez-lhe suas observações acerca da expressão fria e seca da fisionomia de Seixas. - Pintei o que vi. Se deseja um retrato de fantasia, é outra cousa, respondeu o artista. - Tem razão; meu marido não anda bom. É melhor interromper seu trabalho por alguns dias; eu lhe mandarei aviso quando for ocasião. Essa tarde Seixas achou Aurélia inteiramente outra da que era nos últimos tempos. Sua expressão meiga, e sobretudo a candura e singeleza de seu modo, restauraram em sua memória a imagem da formosa menina de Santa Teresa, a quem amara outrora. Deixou-se aliciar por essa ilusão, embora estivesse bem convencido de que a veria dissipar-se de repente, e dolorosamente como as outras. Mas sua alma tinha necessidade de repouso e ainda mais do conforto de uma crença consoladora; abandonou-se àquela doce quimera e quis persuadir-se de que revivia um idílio de seu passado. Aurélia trouxe a conversa para os assuntos que mais po-diam seduzir um espírito poético e elegante como o de Seixas. Falou de música, de versos, de flores e de artes. Quando a ironia não lhe acerava a palavra, ela tinha uma exuberância de afeto e ternura que manava de seus lábios e derramava em torno de si uma atmosfera de amor. À noite tocou piano e cantou os trechos prediletos do ma-rido. Não era ela decerto, apesar dos elogios de D. Firmina, uma mestra, nem mesmo uma discípula exímia e correta. Mas poucas teriam seu gênio artístico; ela tocava por inspiração, e o canto eram as emoções de sua alma que ressoavam espontaneamente como os harpejos da brisa no seio da floresta. Os dias seguintes correram na mesma doce intimidade. À tarde no jardim, ou admiravam juntos as flores, ou liam no mesmo livro algum romance menos interessante do que o seu -próprio. Seixas incumbia-se da leitura, e Aurélia escutava sentada a seu lado. Às vezes, ou porque se distraísse um momento, ou por sofreguidão de antecipar a narração, reclinava-se para correr os olhos pela página, onde ia brincar um anel de seus cabelos castanhos. Foi no meio de uma dessas cenas que o pintor apareceu de novo. Seixas deu sinal de contrariedade, que a gentileza de Aurélia conseguiu desvanecer. Conservou durante a sessão a mesma expressão afável e graciosa, que pouco antes iluminava seu nobre semblante, e que fora a sua fisionomia de outrora, quando a subversão da existência ainda não o tinha revestido de gravidade melancólica. Na manhã seguinte, Aurélia examinando o trabalho do pintor, viu palpitante de emoção a sorrir-lhe o homem que ela havia amado. Ele aí estava em face dela, destacando-se da tela, onde o pincel do artista o havia fixado com admirável felicidade. Era um desses retratos em que o modelo, em vez de impor-se, inspira o artista; e que deixam de ser cópias e tornam-se criações. Ainda Aurélia estava enlevada em sua contemplação, quando chegou o artista, que recebeu seus elogios acompanhados de sinceros agradecimentos. O pintor supunha ter feito apenas uma obra de arte. Como podia ele suspeitar o segredo dessa mulher, viúva daquele marido vivo? - O senhor há de tirar uma cópia desse retrato, para ficar na sala com o meu. Quanto a este, desejo que tenha o trajo com que me lembro de ter visto meu marido, quando o conheci. É uma surpresa que pretendo fazer-lhe. Compreende? - Perfeitamente. - Peço-lhe, porém, que não toque no rosto. - Fique descansada. Aurélia explicou ao pintor o trajo que devia figurar no retrato do marido e tomou posição para concluir o seu. Ao voltar da repartição, notou Seixas que sua mulher não conservava a mesma disposição de ânimo em que a deixara na véspera. Não tornou à primitiva irritação, mas foi a pouco e pouco retraindo-se, e acabou por isolar-se de todo. Passava os dias encerrada em seu toucador. Quando aparecia, era sempre distraída e tinha o aspecto dessas pessoas que se habituam a viver no mundo da fantasia, e que sentindo-se como aturdidas quando descem à realidade, refugiam-se em suas quimeras. A casa das Laranjeiras tornara-se uma verdadeira solidão, habitada por dois cenobitas, que não se viam, nem tratavam, a não ser na hora de jantar. Ao levantarem-se da mesa, Aurélia escondia-se no fundo de algum espesso caramanchão, de onde seguia de longe com os olhos o vulto do marido, que passeava pelo jardim. À noite cada um tomava seu livro; Seixas lia; Aurélia aproveitava esses instantes de liberdade para tornar aos seus pensamentos, e aos suaves devaneios que abandonava ao sair do toucador. D. Firmina a princípio estranhara os modos de Aurélia; mas era uma senhora de muito juízo, e bastante prática da vida. Atinou logo com a causa dessa alteração, e aproveitou a primeira oportunidade para dar mostra da sua perspicácia. - Não acha Aurélia tão diferente do que era, Sr. Seixas? Fernando surpreendido pela pergunta volveu os olhos para a mulher, cujo pálido semblante iluminado nesse momento por um reflexo do Sol no ocaso, tinha a diáfana aparência da cera. - Algum incômodo passageiro. Precisa sair da cidade, passar algum tempo fora, na Tijuca ou em Petrópolis. - Não tenho moléstia, respondeu Aurélia com indife-rença. - Moléstia não tem, Aurélia; mas é cousa que se parece, tornou a viúva. E os passeios no campo são excelentes para essas melancolias e desmaios que você anda sofrendo. - Engana-se, não sofro cousa alguma. - Ora, não disfarce! Quem não vê que aí anda volta de... - De quê? insistiu Aurélia completamente alheia à intenção da viúva. - De um neném! Soltou a moça uma gargalhada; mas tão descompassada e ríspida que D. Firmina mais confirmou-se em sua convicção. Fernando erguera-se a pretexto de regar os tabuleiros de violetas de Parma, que rodeavam os pedestais das estátuas de -bronze. Decorreram meses. De repente, sem causa conhecida, com o constraste e o improviso que tinham as resoluções dessa mulher singular, operou-se uma revolução na casa das Laranjeiras, e na existência de seus moradores. Saiu Aurélia do isolamento a que se condenara durante tanto tempo, mas para lançar-se no outro extremo. Mostrava pelos divertimentos uma sofreguidão que nunca tivera, nem mesmo em solteira. Entrou a freqüentar de novo a sociedade, mas com furor e sem repouso. Os teatros e os bailes não lhe bastavam; as noites em que não tinha convite, ou não havia espetáculo, improvisava uma partida que em animação e alegria, não invejava as mais lindas funções da Corte. Tinha a arte de reunir em sua casa as formosuras fluminenses. Gostava de rodear-se dessa corte de belezas. Os dias destinava-os para as visitas da Rua do Ouvidor, e os piqueniques no Jardim ou Tijuca. Lembrou-se de fazer da praia de Botafogo um passeio, à semelhança dos Bois de Boulogne em Paris, do Prater em Viena, e do Hyde Park em Londres. Durante alguns dias ela e algumas amigas percorriam de carro aberto, por volta de quatro horas, a extensa curva da pitoresca enseada, espairecendo a vista pelo panorama encantador, e respirando a fresca viração do mar. Os passantes olhavam-nas surpresos, e com um aspecto que traduzia a malignidade de suas conjeturas. Aurélia não fazia o mínimo caso dessas caras mexeriqueiras; mas as amigas incomodaram-se; e ela foi obrigada a abandonar o lindo passeio às aves de arribação. Esta ânsia de festa e distrações sucedendo a uma inexplicável apatia e recolhimento, faria desconfiar que Aurélia buscava na sociedade, não o prazer, mas talvez o esquecimento. Porventura tentava aturdir o espírito, e arrancá-lo por este modo às cismas e enlevos em que se engolfara por tantos dias? - Deve estranhar esta febre de divertimentos? disse ela ao marido. É uma febre, é; mas não tem perigo. Quero que o mundo me julgue feliz. O orgulho de ser invejada, talvez me console da humilhação de nunca ter sido amada. Ao menos gozarei de um aparato de ventura. No fim de contas, o que é tudo neste mundo senão uma ilusão, para não dizer uma mentira? Assim desculpe se incomodo, tirando-o de seus hábitos para acompanhar-me. Há de reconhecer que mereço esta compensação. - É minha obrigação acompanhá-la, e me achará sempre disposto a cumpri-la. Moça, formosa e rica, deve gozar da vida que lhe sorri. O mundo tem esta virtude; o que não absorve, gasta. Daqui a algum tempo a senhora verá a existência por um prisma bem diverso, e do passado não lhe ficará senão a lembrança de um pesadelo de criança. - É o que eu procuro justamente. Que não dera eu para apagar estas crenças, ou antes essas incômodas ilusões de minha infância, com que educou-se minha alma, e conformar-me à realidade da vida. Oh! se eu o conseguisse!... A reticência desfez-se nos lábios da moça em um sorriso sardônico. - Então nos havíamos de entender!
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Senhora
Romancelivro SENHORA Aurélia Camargo, filha de uma pobre costureira e órfã de pai, apaixonou-se por Fernando Seixas - homem ambicioso -, a quem namorou. Este, porém, desfez a relação, movido pela vontade de se casar com uma moça rica, Adelaide Amaral, e pe...