My opposite reflection

Seja boazinha

Já faz treze anos que cheguei aqui. Treze anos! Isso aqui não é uma instituição qualquer de crianças órfãs. Parece mais um manicômio. Sério. Eu não estou sendo irônica e nem exagerada. Aqui em Little Dave não tem uma pessoa normal. E isso serve para todos! Sem exceção! Desde os pirralhos mais novos até os funcionários mais velhos. Por falar nisso, tem gente aqui que eu acho que já morreu faz tempo. Como a senhora Cornélia. Desde que eu usava fraudas, essa mulher tem a mesma cara. Ela não muda nunca.  Há quem a chame até de "A velha empalhada". É, eu sei. Parece ser meio ofensivo e desrespeitoso. Foi ideia da minha irmã. Apesar de sermos gêmeas, não temos nada em comum. Isso eu garanto. A não ser nossa aparência física. Treze anos aqui dentro e ainda tem gente que confunde nós duas. Tá... Somos idênticas pessoalmente.
Espera! Eu não me apresentei. Desculpa! Então... Meu nome é Lizie, tenho treze anos. Vim parar aqui quando ainda era bebê junto com minha irmã gêmea Lucy. Ela é tudo que eu tenho. Infelizmente. Ou felizmente. Ah sei lá... Minha relação com ela é uma coisa bem complicada de se entender. Às vezes eu a odeio com todas as minhas forças e mais um pouco. Querendo que qualquer coisa apareça pra levá-la embora dessa galáxia. Mas às vezes eu agradeço a quem quer que tenha nos trazido pra cá por não ter nos separado. Como se ela fosse meu alicerce. Percebeu a instabilidade que é? Pois é. Nem eu entendo.

- Ei, Lizie!
- Oi, Bella. O que você quer?
- Ei! Calma! Eu só vim perguntar se você viu sua irmã.
- Hoje não. Fui falar com ela ontem na hora do café mas me arrependi. Você tava lá no refeitório. Todo mundo tava. E mesmo assim ela fez aquilo. Você viu o que ela fez?!
- É... Olha, eu só acho que você deveria ir falar com ela.
- Pode esquecer! E não vem querer defender a Lucy não!
- Não é isso... Eu só...
- Deixa eu adivinhar o que aconteceu...A senhora Cornélia mandou ela vir me pedir desculpas. Mas como sua amiguinha é covarde, não tem coragem de vir aqui fazer isso olhando na minha cara. Agora tá se fazendo de vítima como sempre e te mandou aqui pra me convencer a ir falar com ela. Bella, por favor me deixa!
- Tudo bem. Mas... Foi a senhora Cornélia que me pediu pra procurá-la. Não vejo Lucy desde ontem. Ninguém viu. Eu já perguntei a todo mundo se alguém tinha visto ela passando por aí.
- Sério?
- Sim. To preocupada. E acho que você também deveria estar. Tchau, Lizie.
- Tchau, Bella.
Onde essa garota se enfiou? Deve tá tramando alguma coisa. E eu vou descobrir. Nem que eu tenha que revirar esse prédio inteiro. A senhora Cornélia quer castigá-lá pelo que fez comigo. Ela vai pagar pela vergonha que me fez passar ontem. Eu vou te achar, maninha.
- Olá, minha pequena!
- Hey, Phil! Eu tava precisando falar com você mesmo, cara!
- Comigo? Pode falar, amorzinho!
- Mas antes de te falar o que eu queria, é... você por acaso viu a Lucy por aí hoje?
- Não vi. O que você queria me falar?
- Nossa! Que curioso! Calma... Tem certeza, Phil? É que...
- Tenho.
- Tá bom então. Mas, valeu mesmo assim.
- Então, o que você queria comigo mesmo, mocinha?
- Ah é... Eu... Lucy! Ei! Olha ela alí! Phil, foi mal aí... Mas eu preciso falar com ela. Depois eu te procuro, tá?
- Promete?
- Prometo. Agora eu tenho que ir. Tchau!
- Tchauzinho, pequena. Toma cuidado!
- Pode deixar!

Phil é o jardineiro que trabalha aqui desde sempre. Agora eu me dei conta de que nunca perguntei a idade dele, mas deve ser quarenta e poucos anos. É impressionante o jeito que ele cuida desse lugar. O terreno é enorme. Não sei como ele consegue dar conta disso tudo. Deve ser mágica ou alguma coisa do tipo. Parece até uma floresta rodeando o prédio. E ele cuida de tudo sozinho. Ele já me contou que nem sempre foi assim. Tinha muitas casas ao redor daqui. Era bem movimentado o bairro. Mas parece que começaram a desaparecer pessoas, algumas mortes e tal. E foram crescendo boatos de que o responsável por isso estava aqui dentro de Little Dave. Daí as pessoas das proximidades daqui começaram a se mudar até que o bairro ficou inabitável. Phil disse que ele não sabe bem o que aconteceu porque foi o período que ele teve que se afastar daqui. Uma das vítimas tinha sido sua filha de nove anos de idade. Ele tinha perdido sua esposa fazia cinco meses num acidente de carro. Ele ficou arrasado. Tadinho do Phil. Ele é tão bonzinho. Não merecia sofrer tanto. Enfim. Os donos do orfanato conseguiram comprar vários terrenos vizinhos. E eu ainda acho que Phil tem poderes pra cuidar tão bem disso tudo aqui sozinho. Já quiseram colocar alguém pra ajudá-lo, mas ele não acredita de jeito nenhum. Teimoso. Ele é muito amorzinho. Trata as crianças como se fossem todos filhos dele. E eu, bem, ele parece ter um carinho especial por mim. Não sei. Só acho. As vezes ele me ensina algumas coisas de jardinagem, me conta histórias, e sempre que eu preciso de ajuda, ele sempre tem a coisa certa pra falar. Quando eu era mais nova, ele fez um balanço em uma das árvores atrás do prédio. Ficou num lugar bem escondido. Ele me levou até lá e disse que era meu presente. Foi no meu aniversário de cinco anos. Eu perguntei se ele tinha feito um para minha irmã também, afinal era o aniversário dela também. Ele disse que a Lucy não foi boazinha e não merecia.
- Você disse que queria que eu te ensinasse a voar, lembra?
- Sim! Você vai me dar asas?!
- Não, pequena. Você vai voar com o balanço.
- Mas tem asas nele?
- Quanta inocência... Não, meu amor.
- E como eu vou voar?
- Você não pode voar ainda. É muito pequena. Eu não posso te dar asas ainda. E se eu te der asas e você for embora?
- Eu não vou fazer isso! Eu prometo!
- Tudo bem. Mas você ainda não está pronta. Depois falamos sobre asas.
- Ah... Tá bom. Espera aí...
- Ei! Aonde você vai?
- Vou chamar a Lucy. Ela vai adorar!
- Ei! Não! Volta aqui!
- Ai Phil! Você tá me machucando! Me solta!
- Desculpa. Senta aí. Você não vai chamar a Lucy!
- Por que não?!
- Esse tem que ser nosso segredo. Você não vai falar pra ninguém que eu te fiz um balanço. Não traga ninguém aqui. Você entendeu?
- Mas a Lucy é minha irmã e...
- Você entendeu?! Eu disse ninguém!
- Por que você tá gritando comigo, Phil?
- Você não está colaborando comigo, Lizie! Seja boazinha e eu nunca mais grito com você!
- Você tá me machucando!
- Eu não quero que a Lucy venha aqui, entendeu?! Ela não é boazinha como você.
- Ela é minha irmã! Eu quero trazer a Lucy pra brincar comigo.
- Você está estragando tudo que eu preparei! Isso é só pra nós dois, entendeu?! Se você insistir mais, eu quebro essa droga de balanço agora!
- Não! Não faz isso! Eu não vou falar pra ninguém!
- Promete?
- Prometo. Agora pode me soltar? Tá doendo.
- Claro... Desculpa, anjinho.
- Isso não foi legal, Phil. Não foi.
- Desculpa, pequena. Vamos voltar a brincar. Isso nunca mais vai acontecer.
- Promete?
- Prometo.
Foi bem estranho isso. Ele surtou quando eu falei em mostrar o balanço à Lucy. Sempre que eu menciono o nome dela, ele começa a agir diferente. Eu nunca entendi porque. E nem tenho coragem de perguntar.