Ela caminhou a passos lentos e vacilantes até a cozinha pequena, branca e mal iluminada. Seus pés descalços produziam um som grudento no piso gelado. Estava frio e silêncio. Mas ela queria gritar... gritar até a garganta explodir, até que todo mundo ouvisse o que ela tinha a dizer.
Já era madrugada. Passava das três. Talvez estivesse perambulando pela casa desde as duas. Tremia, mas não por causa do frio, do vento gelado que invadia o apartamento através das frestas da janela. Tremia de raiva, de tristeza, de humilhação.
Por que estava na cozinha? Era como se não lembrasse como chegara ali. Havia um borrão na sua memória desde que vira aquela mensagem. Ainda segurava o celular na mão esquerda: o visor iluminava parte da cozinha com uma luz azulada e gélida – estava ali a prova de sua decadência. O que queria na cozinha, afinal? Sua mão estava frouxa, quase deixou cair o aparelho no chão. Mas não podia fazer barulho...
não podia, não podia, shhh, shhh
Ele despertou daquele jeito preguiçoso e sonolento de quando se acorda no meio da noite. Não queria abrir os olhos. Que droga, ainda estava escuro... Tateou a cama vagarosamente e foi quando um pequeno ponto se acendeu em seu cérebro. Onde ela estava? Resmungou ainda de olhos fechados, a garganta seca. Abriu a boca para dizer seu nome. Quase disse o outro. Corrigiu-se, bêbado de sono, mas ainda com uma pequena consciência, aquela pequena e teimosa consciência que desperta lentamente no fundo do cérebro após abandonarmos o território dos sonhos.
- Volte pra cama! – ele grunhiu, resmungando o nome dela, uma, duas, três vezes. Como ela não respondia, finalmente abriu os olhos. O quarto estava embaralhado, borrado e escuro. Os lençóis estavam bagunçados após uma boa noite de sexo. – Onde você está?
- Estou bem aqui. – ele ouviu a voz dela. Parecia diferente, até um pouco engraçada; meio anasalada e em um tom grave, quase masculino. A silhueta dela aparecia recortada na porta, escura e borrada, como uma sombra.
Ela levantou o celular, iluminando o quarto com aquela estranha e pálida luz azul. Viu os dele olhos se fechando e seu corpo se retraindo de leve na cama, como se a luz o cegasse. Mal sabia ele que quem estava cega era ela. Bem, talvez soubesse sim aquele maldito. Mas agora ela enxergava muito bem; manteria os olhos bem abertos, vigilantes.
Sabia que ele gostava de brincar, fazer piadas. Muitas vezes fazia piada dela, diminuindo-a. Ela realmente se sentia pequena perto dele. Ele era grande, forte, inteligente. Ele era tão melhor do que ela. Será que foi por esse motivo que ele fez o que fez? Será que foi mais uma piada cruel para fazê-la se sentir menor?
Mas uma vez – uma única e maldita vez naquele relacionamento – ela se sentiria grande. E seria ali, naquele quarto, naquela luz azul e difusa, com a prova daquela piada horrivelmente sem graça em sua mão, iluminando o vazio entre os dois.
- Está tudo bem com você? – ele perguntou confuso. Finalmente a consciência o atingia, pouco a pouco, e ele enxergava melhor a silhueta fina e pequena dela. Ela era tão pequena, tão frágil – ele sabia. Ele sabia porque a via por inteiro, não como ela queria que a enxergassem. Ele viu sua alma porque ela entregou a ele todo o seu coração. Era uma boa sensação sentir o coração de alguém pulsando na palma da mão. Era uma sensação poderosa.
- Estou ótima. – ela respondeu.
Só que agora ela parecia fria de verdade. Não parecia estar fingindo. E a voz gelada dela atravessou sua espinha como uma corrente de vento passeando em seus ossos. Havia alguma coisa errada. Ele a viu erguer o celular bem alto e aquela luz azul fez seus olhos doerem. Um novo arrepio percorreu seu corpo e ele entendia aquela sensação também: era medo, terror. Não era possível... ela não poderia, não teria coragem...
- Ei, o que você está fazendo com o meu celular?
- Eu já sei de tudo. – ela retrucou e o nome dele se formou em seus lábios feitos de gelo. O efeito foi seu próprio corpo congelar como se ela o tivesse enfiado no congelador. Sem perceber, ele recuou e tudo o que encontrou foi o encosto frio da cama.
- Sabe o quê? – ele perguntou, mas sentia bem no fundo o que era. Sabia que ela sabia.
Sim, ela pensou. Ele sabia. Ele sabia muito bem o que tinha feito. E por alguma estranha vidência que se tem nesses momentos, ele também sabia o que ela faria agora. E sabia de coração que merecia. Talvez até mesmo ansiasse por aquilo.
Pela punição.
Ela também ansiava. Porque era o momento de ser forte. Era o momento de ser grande.
grande grande grande como um arranha-céu ela era grande
Ele a viu se aproximar lentamente, quase calmamente. Parecia tranquila. No escuro ele via seu sorriso. Não era um sorriso comum, não era o sorriso subserviente que ele se acostumara a ver. Os olhos que o veneravam. Não, era outra coisa. Outra coisa sombria e rastejante, algo enterrado bem no fundo de sua alma.
Achava que tinha seu coração em suas mãos. Achava que tinha visto sua alma, que ela lhe entregara em uma bandeja de prata. Mas não. Agora, somente agora, estava realmente enxergando sua alma. E ela era vermelha.
- Você não precisa fazer isso. – ele começou a dizer e sua voz falhou. Subiu em um tom agudo e desigual. Ele tentou recuar mais e mais, tentou atravessar a parede – patético, ela pensava – mas tudo o que conseguiu foi molhar os lençóis com sua própria urina quente. A única coisa quente naquele quarto frio. O suor também descia gelado por sua nuca e a respiração era tão desigual quanto a fala. – Você não precisa, meu amor...
- Cale a boca, traidor! – ela disse, passeando a lâmina da faca em seus lábios como um beijo suave. – E só a abra para gritar!
- NÃO!
Foi tudo muito rápido. Ela sentiu uma força absurda subindo por seu braço. Uma força descomunal que não sabia que possuía. A faca brilhou, refletindo a luz da lua, a lua azul, enchendo o quarto com aquela luminosidade, até que encontrou a carne e manchou tudo de vermelho. O lençol, as paredes, seu rosto.
vermelho vermelho vermelho forte forte forte
Ele gritava. Gritava com toda a força do seu ser. E ela gritava também. Traidor, traidor, traidor. Seus olhos estavam injetados, vermelhos, vermelhos como todo o quarto. O sangue voava doce e liberto daquele corpo vil onde estava enclausurado.
liberdade era tudo o que queria liberdade liberdade doce liberdade
Até que veio o silêncio. E sem que percebesse, ela estava chorando. Abraçava-se a uma poça de sangue. Não vá, não vá, repetia. Sinto saudades... fique comigo... não me deixe... não me deixe sozinha...
Havia sangue por toda a parte. Vermelho vivo e morto. Estava na cozinha novamente e não sabia como tinha chegado lá. Encarava um prato à sua frente. Nele estava um pedaço de carne crua e vermelha. Estava faminta.
Devorou até o último pedaço.
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