Eu tenho a crença de que todos nascemos com um propósito,de que desde o momento em que você entra nesse mundo seu caminho está há muito escrito, tudo que resta a fazer é seguir cegamente,como um fantoche tropeçando em suas próprias cordas,aterrorizado com o que vai acontecer no final do espetáculo.
Por isso digo com tanta certeza,algo nos reuniu naqueles telhados.Se houver tal coisa como um deus ele foi o responsável por levar essas 6 crianças deploráveis,cansadas da fome e da guerra,ao encontro umas das outras.Na minha concepção foi uma maneira que o criador arrumou de se desculpar pelo nosso sofrimento.
De qualquer forma,eu o agradeço por isso.
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A neve que se acumula nas ruas,becos e vielas de Leningrado é cinza,decorrente da poeira que pesa na atmosfera e adentra nossos pulmões sorrateiramente,causando dores incômodas e uma angustiante falta de ar.
Tento me livrar desses pensamentos e me afasto cuidadosamente da beirada do telhado,um passo em falso significa uma queda e morte dolorosas.
Sinto o aperto frágil mas ao mesmo tempo firme de Irina ao redor do meu braço,giro e observo seus olhos azul claros.
Devido ao cerco das tropas alemãs a comida é escassa,portanto as pessoas que antes se gabavam de ter alguns quilos a mais agora arrastam seus esqueletos com pele flácida pelas ruas da cidade.Irina parece feita para esse tipo de situação com a sua estatura alta e traços finos,apesar disso as sombras roxas que surgiram ao redor dos seus olhos me preocupam.
Ela é muito bonita,eu sempre achei,com seus cabelos longos e loiros e os grandes olhos azuis,suas feições um tanto quanto féericas,o único defeito que possui é a incapacidade de articular qualquer som.
Irina não fala,todos sabemos e sabíamos mesmo antes de conhecê-la, um assunto muito comentado na rua quando ela se mudou para cá.
Antes as pessoas comentavam por maldade,achavam que ela se considerava superior de alguma forma mas depois de um tempo todos entenderam,ela não possui voz.
Mesmo assim ela consegue se fazer entender perfeitamente por meio da escrita e expressões.
Logo depois que ela chegou houve a grande incredulidade das pessoas,como essa garota de olhos azuis e cabelos loiros que seria perfeita para estrelar uma propaganda da juventude hitlerista podia ser judia?
As vezes a vida gosta de dar um tapa na cara das pessoas.
A mão de Irina ainda está sobre o meu braço enquanto andamos pelo interior dos telhados,de prédio em prédio.Essa é uma qualidade que aprecio nela,sua capacidade de se preocupar com as pessoas mesmo quando nem elas mesmas se preocupam.
--Viu Demetri hoje?
Ela faz um gesto negativo com a cabeça.
--Sabe onde ele está?
Seu dedo se move e aponta na direção da rua,seus olhos azuis se reviram.
Eu já imagino o que ele pode estar fazendo e solto uma risada baixa,Irina sorri e ajeita uma mecha de meu cabelo ruivo para dentro da minha boina,continuamos andando em silêncio.
Depois de um determinado tempo chegamos nas escadas,ela começa a descer mas para no meio do caminho,aponta para o meu caderno e faz uma expressão que conheço bem.
Se ela pudesse sei que estaria dizendo:"Ainda escrevendo isso?"
Inclino a cabeça de lado e sorrio
--Álguem precisa escrever,não é?
Logo a sigo na descida pelas escadas tortuosas do complexo de apartamentos.
Esse percurso sempre me deixou extremamente ansioso por ser claustrofóbico mas nunca foi grande problema para qualquer um dos outros,Demetri e Victor costumam apostar corrida,correndo o grande risco de quebrar uma perna ou duas,o que significaria um transtorno quase absurdo por aqui,já que normalmente os hospitais agora se destinam a feridos de guerra,não garotos delinquentes que gostam de se atirar de lugares altos na escuridão abaixo.
Não que eles se importem com quebrar algum osso...
Nunca disse que eles eram inteligentes.
Após chegarmos nos níveis iniciais do complexo nos encaminhamos para a rua cinza e congelada e fazemos o de sempre.
Parar,respirar fundo e abotoar os casacos.
Ao sair sinto meu rosto se retorcer involuntariamente,o cheiro de morte é perceptível no ar,um odor de cinzas e corpos em decomposição.
O cheiro da guerra,e ele chegou a Leningrado.
Sigo a figura de Irina pelas ruelas escuras da cidade um céu chuvoso acima de nós,me sinto feliz.Não sei quanto tempo exatamente não vejo o sol mas a promessa de chuva me deixa aliviado.
Após diversas chuvas de bombas vamos ter uma de água para variar,talvez ela até mesmo lave esse cheiro para longe.
Eu gostaria disso,ar puro de novo.
Continuamos nosso percurso,a cidade se tornando mais e mais decadente a medida que avançamos,nas paredes dos prédios e construções o pôster incentivando jovens russos a se alistarem e combaterem as tropas alemãs se mostra claro.
Irina caminha indiferente ao cenário ao redor,seus passos rápidos e olhos para cima,creio que esteja com medo.
Isso me deixa incomodado,é perfeitamente normal que ela tenha medo de andar por aqui,mas o que me incomoda é o fato de que se ela estivesse com Demetri ou Victor ou até mesmo Yvon ela não estaria tão insegura.
Gostaria que ela pensasse que eu posso me virar tão bem quanto qualquer um dos outros garotos caso algo dê errado.
Resolvo deixar isso de lado antes que me deprima ainda mais.
--Como está Mikhail?
Ela olha na minha direção quando faço a pergunta e responde com a linguagem de sinais que a a senhora Vikka lhe ensinou ainda pequena.
"Bem,está em casa."
--Ainda está com medo de deixar ele sair?
Seu rosto recebe uma sombra,posso perceber a ansiedade dela antes que mova sua mão para uma resposta
"É muito perigoso"
Eu assinto com a cabeça,as notícias que chegaram ao nosso complexo de apartamentos eram assustadoras.
O novo alerta de Leningrado era com relação a homens e mulheres que não conseguiam aceitar o cerco e a falta de comida como pessoas racionais e passaram a roubar crianças para consumo.
Canibais de crianças,para acabar com o resto da esperança de que os horrores dessa guerra vão chegar ao fim.
Mikhail é o irmão mais novo de Irina,ele tem 11 anos,4 a menos que ela,mas isso não a impede de tratá-lo como se fosse mais novo.Devido a essa preocupação com os canibais não o vejo faz cerca de duas semanas.
Ao longe avisto um garoto loiro e alto de olhos azuis escuros.
--Demetri!--grito o seu nome.
Ele nos vê e vem em nossa direção, o típico sorriso de sempre no seu rosto.
Abraça a Irina em comprimento e acena na minha direção com a cabeça, juntos voltamos na direção de onde viemos.
Aquele poderia ter sido um dia considerado normal.
Mas eu aprendi a muito tempo que "pode" e "se" são palavras perigosas.
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As sombras de Leningrado
Historical Fiction"Por que vocês sobem nos telhados?" Demetri deu um meio sorriso "Nunca ouviu o ditado?" Quando há um incêndio corra pra o telhado".Olhe ao seu redor,a cidade inteira está em chamas,as pessoas só não perceberam ainda"