A noite estava diferente... O céu negro era de uma beleza especial, iluminado apenas pelas estrelas cintilantes que nele pareciam flutuar. E pela lua... Ah, a lua! Linda! Cheia! Intensa! Seu brilho parecia um convite para que eu a ela me juntasse no infinito. Certamente um convite que eu planejava aceitar.
Aquele era o local perfeito. Uma estrada deserta, no interior do Estado do Rio de Janeiro, que ligava o nada a lugar nenhum. Uma estrada de terra, sem luz elétrica, onde os faróis de um veículo automotor raramente iluminavam a poeira levantada do chão quando por ela passava. E essa estrada ficava a apenas poucas horas do centro do Rio. E era naquele lugar que eu, em breve, colocaria meus planos em prática. Longe das vistas de qualquer pessoa que pudesse se chocar com a cena que lá estava para acontecer.
Se alguém estivesse ali, naquele fim de mundo, no meio da madrugada, observando os meus passos, iria se perguntar por que eu havia tomado uma decisão tão drástica. Que decisão? Eu decidira acabar com a minha vida... Se é que se pode chamar isso de vida! Eu resolvera pôr fim à minha existência sofrida e amaldiçoada. E se todos pudessem ler meus pensamentos e entrar nos meus mais profundos medos, saberiam que eu tinha meus motivos. E, para mim, eram motivos tão nobres quanto ajudar as vítimas de atentados terroristas nos Estados Unidos ou os sobreviventes de uma enchente em uma cidade brasileira.
Na verdade, meu motivo era apenas um e tinha um nome: Victor! Victor Hugo, meu amor! Meu eterno e impossível amor mortal! Foi por ele que eu decidira afastar-me para sempre. Foi para poupá-lo. Para salvá-lo do constante perigo de viver ao meu lado.
Victor ainda não sabia de minha decisão. Seria mais fácil assim. Talvez se ele soubesse, eu não teria coragem de praticar tal ato. Em breve, ele ficaria sabendo de tudo... do porquê de tudo.
Eu havia deixado o meu diário muito bem guardado em minha casa, em um cofre na parede do meu quarto, atrás de um quadro de Picasso, O Velho Guitarrista, um dos meus favoritos. E havia falado para ele que, se algum dia algo me acontecesse, eu gostaria que ele ficasse com um objeto muito valioso para mim, e que este objeto estaria guardado naquele cofre, cujo número do segredo eu já havia lhe dado. Quando ele finalmente resolvesse procurar o tal objeto, aí, então, já seria tarde demais.
São duas e meia da madrugada da última quinta-feira do mês de agosto. Provavelmente, a essa hora Victor Hugo deve estar em casa, dormindo. Naquela mesma noite, de quarta para quinta, eu havia falado para ele que eu iria passar alguns dias sozinha em uma cidade próxima, acertando os últimos detalhes da nova turnê que eu faria com a minha banda, os Nightwalkers. Nosso empresário, Ricardo, geralmente, resolvia tudo, mas os pequenos detalhes, tipo a cor das toalhas e a decoração do camarim, eu sempre gostava de decidir pessoalmente. Victor, então, acreditava piamente que eu havia viajado naquela noite mesmo, de madrugada, para resolver tudo e que só voltaria na noite seguinte. Tempo suficiente para executar meus planos, sem que ele desconfiasse.
Victor já conhecia a minha 'alergia' ao sol, a minha 'mania esquisita' de dormir de dia e os meus hábitos noturnos intensos, permanecendo acordada a noite toda sempre. Provavelmente, ele deveria estar achando que eu passaria a quinta-feira toda dormindo e que, só na sexta-feira eu estaria resolvendo as coisas. Assim, somente na noite de sexta é que Victor daria por minha falta e tentaria me procurar, sem êxito.
Então, finalmente, após esgotar todas as possibilidades de me encontrar, Victor iria até o cofre, pegaria o diário e descobriria toda a verdade. E, depois, quando encontrasse meu corpo, ou melhor, as cinzas dele remanescentes, ele mandaria colocar no local uma placa com os dizeres: Sobre este solo foram espalhadas as cinzas de Samantha Walker...
As horas rapidamente se passaram e o dia já estava quase amanhecendo. Nem que eu quisesse, já não poderia mais voltar atrás na minha decisão. Não dava mais tempo... Em poucos minutos, os primeiros raios de sol começariam a surgir.
A espera era angustiante. Meus olhos estavam fixos no horizonte, aguardando ansiosamente pelo momento em que o sol surgisse. Apesar de estar certa do que estava fazendo, eu tinha medo. Desde que eu me tornara o que sou, nunca mais havia tido contato com o sol assim diretamente sobre mim. O sol, que por muito tempo de minha vida banhou minha pele com sua luz e calor, nos últimos anos se tornara meu inimigo mortal. Mas era um inimigo que eu precisava enfrentar.
Eu conhecia, mas nunca havia sentido na pele, os danos que tal encontro poderia me causar. Na verdade, a única coisa que eu sabia mesmo era que, por mais dolorosas que fossem as consequências imediatas, quando tudo acabasse, eu estaria livre... Livre dessa angústia que me consome a cada dia e contra a qual eu venho lutando com todas as minhas forças...
Por um lado, seria muito bom ver o sol novamente, mesmo que fosse apenas por alguns instantes. A energia que esse grande astro emana é contagiante, apesar de letal para mim e todos os outros de minha espécie. E eu não poderia ter escolhido melhor forma de acabar com minha vida, senão envolvida por seu calor e luz intensos.
Meus pensamentos vagavam pelas lembranças dos dias ensolarados em que eu passeava com meus pais em Paquetá, andava de pedalinho, corria na areia e sentava à beira da calçada para jogar pipoca aos pombinhos, quando me dei conta dos primeiros raios de sol surgindo no horizonte.
A princípio, fiquei observando o grande astro vindo vagarosamente. Mas, conforme o dia foi começando a clarear, meus olhos começaram a se ofuscar pelo brilho intenso que aumentava mais e mais. Eu já não conseguia enxergar nada a não ser um clarão imenso e muito forte. E depois veio a dor... Aquela luz penetrava em meus olhos como se fossem várias agulhas pontiagudas, causando uma dor lancinante e que queimava, queimava muito... Eu apertava os olhos com muita força, para tentar amenizar aquela dor, mas era inútil. E, então, comecei a sentir aquele calor por todo o corpo, até que pequenas pústulas foram surgindo em meu braço, enquanto eu tentava proteger meu rosto, que já ardia intensamente.
Sentei-me no chão de terra, envolvendo meus joelhos com os braços e abaixando a cabeça para tentar me proteger, mas novas pústulas foram surgindo... No pescoço, no rosto, nas pernas... E pequenas chamas foram brotando de dentro delas. As chamas foram crescendo e queimando intensamente todo o meu corpo até que o fogo tomou conta dele totalmente e tudo foi ficando acinzentado.
Naquele momento, o sol já estava radiante. Pássaros voavam pelo céu azul de nuvens branquinhas como tufos de algodão... Nem sequer percebiam aquela cena chocante. Meu corpo parecia uma estátua de cinzas, que começou a se desmanchar à primeira rajada de vento. A poeira cinzenta foi se espalhando rapidamente, tornando-se quase imperceptível em poucos minutos... Ao chão, apenas um montinho de cinzas que formava a base daquela 'estátua humana' permanecia imóvel.
Uma enorme e luxuosa Grand Cherokee, de cor verde metálica e tração nas quatro rodas, era a única evidência de que Samantha Walker estivera naquele local longínquo... Brevemente, seu automóvel seria encontrado e Victor Hugo saberia o que tinha acontecido com ela. Ele, então, diante das circunstâncias, se lembraria do diário que encontrara anteriormente no cofre e voltaria a lê-lo com mais atenção, pois essa seria a única maneira de descobrir o que havia acontecido com ela...
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O Diário de Samantha
RomanceSamantha Walker é a líder da banda Nightwalkers, uma vampira que, com sua voz suave e melodiosa, torna-se, em bem pouco tempo, uma estrela do rock mundialmente famosa. Só o que ela não sabia era que a sua fama repentina facilitaria a aproximação de...