Capítulo Único

84 4 0
                                    



Num tempo antes deste

Quando a ciência era vã

E a magia era certa

Mãe e filha recolhiam

As provisões para a família

Todas em cesta aberta

A incauta e pequena menina

Em hora incerta do dia

Obtusa criatura

Desacata do conselho

Da cuidadosa mãe

Que com a filha estava

No pomposo pomar

As suas frutas colher

"Fique ao meu lado, querida"

Sai correndo em disparate

Se embrenha na floresta

Afastando-se cada vez mais

Da cestinha que esquecera

À certo ponto (não percebia)

Seu vestido amarrotado

Sujo de terra e folhas

Emaranha-se num carvalho

Para, de modo furtivo

Suas fitas ostentar

De repente, a surpresa

"Oh, e agora? Onde estarei?"

Trêmula e arrebatada

A menininha rodeia

Sem a mãe avistar.

Mas percebe (estremece)

Que ali, em nova campina

Sozinha deixará de estar

"Quem está aí?", chilreia tensa

O silêncio responde a menina

Antes que Eólo, com suas vestes

Acaricie o rostinho pálido

Avisando-a do ar da vida

Da figura que a espreita.

Quando vira-se, arisca e assustada

O antro de sua boquinha abre

Sem palavra conseguir emitir

Pois ali (mal esperava)

A mais temível das criaturas

Que sua mãe lhe pintara em mente

Enverga a cabeça colossal

Para, com seu olhar feroz

A pequenina observar

A menininha novamente treme

Sem o olhar conseguir desviar

Dos olhos cristalinos e arredios

Ou das escamas fugazes

Do gigantesco lagarto

Que (antes que perceba)

Suas asas abre

Para o ar golpear

O grito desaparece

Antes mesmo de nascer

Por que, em lugar do medo,

O fascínio e surpresa

Parecem a menina corroer

A mãozinha diminuta se ergue

Devagar

Lentamente

Procurando, suplicando, inocentemente,

A pele do dragão tocar

Talvez pelo Destino, talvez por espelhar

(Para surpresa da menina)

Tamanha curiosidade

O focinhos se aproxima, mansamente

O ar escapa dos pulmões miúdos

Quando, para surpresa da pequena

Seus dedinhos tocam

A cabeça que a encara.

O exclamar rompe a quietude

E antes que (pobre garota)

Possa entender

Um bater de asas a derruba

E quando finalmente se ergue

Só consegue ver, triste e saudosa

As asas sumindo no horizonte.

A mãe, abalada, a tira do chão

"Menina, onde estavas?

Quase me arrasas o coração!"

A menininha, ainda eufórica

Abrindo mão do bom senso

Aperta os ombros da genitora

"Mamãe, eu vi um dragão!"

Mas tudo o que ganha

Para sua decepção

É um safanão e uma censura

"Onde já se viu, fugir

E ainda dizer que

Encontrou um monstro assim?"

Choramingando, a menininha

Vê que, talvez,

A cegueira da mãe

Não esteja no olhar.

E, inconformada,

Resolve não discutir.

O pai, horas depois

Da lavoura voltando

Anuncia a família

Que novo camponês morrera

Num ataque de fanfarrões

Sem acatar os protestos da mãe,

A menina se retira

E, sentada na janela

Se propõe aos espíritos anunciar

"Papai e mamãe tão iludidos

Onde estás, dragão amigo

Que poderia a eles avisar

Que os verdadeiros monstros

Não são vocês

E sim nós, as pessoas?"


A Menina e O DragãoOnde histórias criam vida. Descubra agora