Ei, sorria

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Inspirei fundo, duas vezes. Nenhuma das
tentativas de diminuir a frequência cardíaca
funcionava. Olhar o fundo me aterrorizava,
embora tivesse certeza de minha escolha.
Cerrei os olhos, e em minha mente
anuviada apareceu aqueles que me
importavam. Meu pai foi o primeiro a
aparecer. Três cenas picotadas, na praia,
no casamento, no cemitério... Por pouco
menos de um segundo, minha mente
pareceu indecisa, até que a imagem de
uma de minhas melhores amigas se
formara na mesma. O mais perto de família
que um dia eu sonhei para alguém que de
fato não era. Lembrei do parque de
diversões, das risadas, da maconha até.
Logo, outra menina veio em minha mente
tal como o ar, elemento que ela
representara tão bem. Desanuviou meus
pensamentos, e trouxe a remota paz, algo
tão utópico naquela hora. Tomou meu
corpo e me fez desejar que fosse assim
para sempre. Um sorriso tomou meus
lábios, um sorriso que eu jamais imaginei
naquele momento. Vieram outras
lembranças, e voltaram a me
atormentarem. Lembrava de meus irmãos
tão pouco. Um suicidara, outra tivera
overdose. Parecia a marca daquela família.
Auge e solidão compactuavam tão bem
quando se era um. A mais nova, aquela
criança que sempre me deixava com um
sorriso no rosto, apareceu em meus
pensamentos um pouco depois. Bastarda,
eu rezava todos os dias, para que ela não
tivesse as tradições daquele sobrenome tão
presente em seu sangue. Que pudesse
sorrir como agora sorria, que pudesse falar
de coisas banais e ser feliz. Tal como
todos. Tal como todos diferentes de mim.
A garota entrou em minha mente antes que
pudesse conter qualquer coisa vinda dela. É
porque doía pensar, talvez mais que todos.
Não porque os outros não tivessem tal
importância. É porque os outros me
conheciam. Ela não. Ela conhecera uma
versão de mim difícil de imaginar, difícil de
colocar em palavras. Mas hoje a crise
voltara. Não hoje. Parecia pressentir que
voltaria durante toda a semana. As garrafas
de vodka não ajudaram, eu seria capaz de
confessar. Entretanto, se não fosse por
elas, o suicídio teria vindo de forma muito
mais rápida, e até dolorosa. Esperara, junto
ao álcool, algumas doses de nicotina e por
vezes, Prozac. Esperara que viesse de
maneira tão suave quanto agora, como só
minha crise podia proporcionar. Reabri os
olhos, encarando o abismo que era possível
enxergar ali do cume do Andes. Nunca
estivera tão frio lá, embora questionasse se
o frio era no local ou no em meu próprio
coração. Encarei o fim, ali tão perto de
mim. Apenas alguns passos. Sorri mesmo
sem ter motivo, e deixei que meus pulmões
reabastecessem de ar. E fechei os olhos
novamente, tomando a iniciativa de alguns
passos. Até que não encontrei o chão, e
prossegui, fingindo que estava confiante do
que fazia. Apenas deixei, e de olhos
fechados, não encarei o fim.

Ei, sorriaOnde histórias criam vida. Descubra agora