Prólogo

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- Você deve imaginar que eu tive, realmente, uma vida perturbada, envolta em caos, sofrimento e tristeza. Sem contar aquela criança que eu carregava comigo. E aquele outro menino sobrenatural, que aparecia aleatoriamente em meus sonhos e, por vezes seguidas, em algum lugar por onde eu andava. Uma figura dócil, fantasmagórica e também assustadora. Meu coração palpitava e parecia parar quando eu o via. Entrava em breves crises de desespero ao conscientemente ler seus lábios formando a palavra "mãe". As lágrimas já deslizavam de meus olhos quando sua imagem se embaralhava novamente na multidão. Eu não aguentava mais. Era muita angústia para uma pessoa só.

- Entendo. Mas eu achei que essas imagens, essas assombrações do garoto, somente haviam começado depois de você ter tomado seu caminho - completou o rapaz.

- Não. As imagens, ou representações ou o que quer que fossem as aparições da criança, começaram logo após aquela tentativa frustrada de uma desgraça carnal na fonte, pelos soldados, como lhe falei. Foi naquela mesma noite, ou melhor, logo no início da madrugada, que recebi aquela visita. Lembro-me bem das planícies verde e rosa ao redor de meu lar tornando-se sombrias e opacas. Foi aquela visita que fez de mim o que sou hoje.

- Acho que você ainda não me contou sobre essa visita. Era o Diabo, Deus? Desculpe, me expressei mal. Não quero dizer que Deus é um, ou o próprio, Diabo, quero saber se essa visita era Deus ou o Diabo. Meu conhecimento sobre religião foi jogado pela janela quando conheci você - disse ele sorrindo, antes de continuar. - Quem a visitou, afinal? Acho que você não chegou nessa parte. Na verdade, semana passada mal começamos a conversar sobre isso.

- Não falei sobre a visita? Perdoe-me, querido. Talvez seja porque eu tenha isso tão vivo em minha mente, que me parece que todos já sabem. Pode também ter sido porque fico extasiada quando consigo vir visitá-lo com tempo, e da última vez realmente tive de interromper o encontro subitamente. Recebi um chamado que não pude ignorar.

- Não tem problema, - disse o rapaz, fazendo um gesto para que continuasse. Ajeitou os cabelos caídos sobre a testa, cruzando as pernas - prefiro que conte quando puder.

- Hoje eu posso. Só achei que já tivesse contado essa parte. E devo confessar que, mesmo que esteja marcado a ferro em minha alma, não me lembro mais de tantos detalhes assim. Faz muito tempo - disse ela, perdendo-se por um momento em memórias distantes.

- Imagino. Afinal, como você disse, foi o que a tornou o que você é hoje.

- Parece-me que todos já sabem essa história... É estranho saber que posso tocar todas as vidas, mesmo sendo hoje o antônimo do que se conhece por vida em si - ela chacoalhou a cabeça e piscou os olhos, dirigindo-se a ele novamente. - Mas, voltando ao assunto, a visita que recebi era uma personificação de um poder maior, uma criatura que se dizia emissário de algo divino. Não sei ao certo se realmente esse ser serve ao Diabo ou a Deus mesmo. Nem nunca soube. Posso dizer apenas que sempre o chamei, naquele tempo e até hoje, de Maldito.

- Maldito?

Ahmnat - Os Amores Da MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora