Capítulo Três - Vulnerável

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Capítulo Três
Vulnerável



São apenas 5 da manhã e já estou pronta para sair. Caminho vagarosamente na tímida luz do sol, meus passos são leves embora sinta meu corpo pesado. Aproveito para ver o nascer do sol.

Adoro esse horário do dia. A fina linha que separa a noite do dia é visível, esse sentimento de transição me fascina. Por um momento me pergunto que paisagem ele deve estar vendo neste momento.

Assim que esse pensamento bate logo o repúdio.

Pensar em você mesmo após dois anos afronta meu pequeno orgulho. Cada vez que ele adentra meus pensamentos eu sinto minhas feridas mal resolvidas se abrindo e todas aquelas memórias querendo me obstruir.

Já acostumada fecho rapidamente essa pequena brecha.

Sou a primeira a chegar no estúdio. Observo meu reflexo no espelho e vejo os meus cabelos. Eles estavam tão cheios quando acordei que resolvi mantê-lo preso em um alto rabo de cavalo. E meus olhos azuis estão caídos sobre grandes olheiras roxeadas.

Minhas mãos pousam sobre a barra e começo a me alongar lentamente. A sensação dos meus músculos sendo estendidos me relaxam.

Dançar é meu melhor método de manter o equilíbrio entre a loucura e a sensatez, exteriorizar meu sentimento enquanto danço não deixa a razão me devorar. É o meu remédio em doses diárias.

As minutos vão passando e os outros bailarinos chegam um atrás do outro, até termos uma grande concentração dos mesmos.

No momento estamos ensaiando para um grande espetáculo de dança, ele é o resultado da parceria de duas grandes companhias de dança do Rio de Janeiro, o resultado dessa união tem sido motivador.

Já que estamos falando de dança devo te dizer que desde sempre eu tenho dançado. Aos quinze anos já tinha certeza que seguiria dançando para sempre.

Me formei em balé clássico mas a um ano me encontrei apaixonada por dança contemporânea, no qual tenho me aprimorado. Esta tem sido a forma que encontrei de me desnudar da mesma maneira que meus sentimentos estavam. Puros e cristalinos, beirando a linha tênue do delicado e do feroz.

Após vinte minutos o diretor adentra o estúdio e todos param para prestar atenção. Este é o ínicio da nossa rotina de ensaio.

- Faltam apenas duas semanas para a estreia. Ainda há detalhes a serem resolvidos e precisamos trabalhar em cima da harmônia. Conto com o trabalho duro de cada um de vocês. - Todos acenam com a cabeça que sim e terminam de se preparar.

Após nos dar todas as instruções começamos a ensaiar. Pensar que em duas semanas será a estreia faz o meu estômago revirar de ansiedade, mal posso esperar.

Noah é o bailarino principal deste espetáculo. Seu preparo físico é espetacular, seu cabelo loiro e olhos cor de mel faz com que todos fiquem caídos por ele. Embora com um corpo potente ele demonstra incrível suavidade, ele faz tudo parecer tão fácil e harmonioso. Sempre li matérias sobre ele nas revistas, poder dançar com ele me faz me sentir incrivelmente orgulhosa, e observá-lo ensaiar é melhor que um menu de degustação.

No final do ensaio ele ainda tem forças para sorrir e cumprimentar a todos. Além de bonito e talentoso ele consegue se dar bem com todos. Se houvesse uma foto do lado da palavra perfeição no dicionário com certeza ele estaria lá.

Eu observo todos arrumando suas coisas e um por um indo embora. Com a estreia chegando eu decido permanecer e ensaiar um pouco mais. Ensaiar até meus músculo derreterem faz com que me sinta menos ansiosa.

Após todos irem embora eu ensaio por mais algumas horas, repassando os passos em frente ao espelho enquanto me corrijo mentalmente.

Antes de ir para casa eu coloco a música 'Medicine' da Daughter para tocar. Fecho os olhos e me deixo esvaziar.

Então tudo em minha mente está em branco e eu sinto o seu olhar me perfurar.

Ele esteve escondido o dia inteiro de baixo da minha pele e neste momento ele tinha sido expelido de dentro de mim.

Estou dançando um dueto com ele. Abraçando o ar e expondo minha fragilidade. O ritmo me balança de um lado para o outro enquanto meu corpo enrijece e relaxa. Absorvida e entregue. Sua presença está ali, quase tão real que penso poder tocá-la. A música pulsa em minha cabeça e os movimentos saem como um turbilhão para fora dos meus ossos e músculos. Tudo é muito real e eu estou sorvida neste coquetel de sensações.

Então de repente ouço um estrondo e sou rapidamente expulsa do meu mundo. Quando abro os olhos eu vejo o reflexo de Noah boquiaberto no espelho e por um momento sua expressão está mais desconfortável que a minha.

- Ah... bem, me desculpe interrompê-lá. - Sua voz está envergonhada. - Eu não estava espiando, eu juro! Eu esqueci meu celular, então... Eu vim buscar - Sua expressão demonstra que viu algo que não devia.

- Tudo bem, não se preocupe com isso. - Abaixo a cabeça envergonhada - Já encontrou seu celular ? - Mudo rapidamente de assunto.

Em segundos ele atravessa a sala e começa a procurar, aproveito sua deixa e arrumo minhas coisas para ir embora. Ele pega seu celular que estava em um canto da sala.

- Está aqui, encontrei. - E a sensação de desconforto insiste em perdurar. - Você vai embora? Já está bem tarde.

- Sim. Vou apenas trocar de roupa. - Digo sem encarar seus olhos.

Sem dar oportunidade para que ele diga mais nada eu ando rapidamente para o vestiário. A vergonha estava me consumindo. Alguém além do meu diário pode constatar minha vulnerabilidade exposta. Nunca sequer havia passado em minha cabeça deixar alguém me ver dançar assim, ter sido vista desprevenida me deixou ainda mais perturbada.

Não me aproximar de ninguém tem sido minha melhor forma de autopreservação. Nunca abrir meu coração me permitiu mantê-lo menos ferido porém mais solitário.

Meu maior medo de me aproximar é por conta da aceitação.

Não acredito que me aceitariam ao ver o quão depressiva e vazia eu posso ser. Em meio a um mundo onde as pessoas procuram algo para completa-las eu não tenho nada a oferecer, e nem elas a mim.

Torço mentalmente para que Noah não comente o que viu, meu medo sobre o que ele poderia pensar me apoderou e me fez soar frio. Não quero dar subterfúgios para ninguém se aproximar de mim.

Depois de me trocar volto a sala e vejo que ele não está lá. Um grande sentimento de alívio me abraça. Pego minhas coisas e parto para fora do edifício. Assim que coloco meus pés para fora da porta meus olhos ficam esbugalhados em instantes. Quando percebo Noah parado do lado de fora um arrepio passa como um relâmpago em minhas costas. Ele está recostado e com as mãos no bolso, assim que percebe minha presença ele endireita a postura e olha diretamente para mim.

Ele sorri e eu sinto meu sangue congelando em minhas veias. 


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