Doidinho

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DOIDINHO

-- Pode deixar o menino sem cuidados. Aqui eles endireitam, saem feitos gente -- dizia um velho alto e magro para o meu tio Juca, que me levara para o colégio de Itabaiana. Estávamos na sala de visitas. Eu, encolhido numa cadeira, todo enfiado para um canto, o meu tio Juca e o mestre. Queria este saber da minha idade, do meu adiantamento. O meu tio informava de tudo: 12 anos, segundo livro de Felisberto de Carvalho, tabuada de multiplicar. -- Então não esteve em aula desde pequeno, pois aqui tenho alunos de sete anos mais adiantados. Já me olhava como se estivesse me repreendendo. -- Mas o senhor vai ver: com um mês mais, estará longe. Eu me responsabilizo pelo aluno. O menino de Vergara chegou aqui de fazer pena: não sabia nem as letras. E está aí. E gritou para dentro de casa: -- Emília, mande aqui o senhor Francisco Vergara. Depois, para o tio Juca: -- Esse que o senhor vai ver é o pior aluno do meu colégio. Chegou-me que nem sabia soletrar. Um vadião de marca.

E com pouco entrava um menino de minha idade, moreno, gordo. Vinha com medo, os olhos assustados. -- É este. Hoje já pode escrever uma carta. Deu-me o que fazer. Quisera que o senhor o visse no primeiro dia de aula, gaguejando. O pai perdeu um dinheirão no colégio dos padres; botou-mo aqui desenganado. Quando voltou para as férias de São João, recebi uma carta do velho, espantado. Dizia-me que o menino já sabia mais do que ele. Deus sabe o trabalho que me deu. O menino já se sentia outro com as palavras pacíficas do velho. Passara-lhe o susto, me olhava como a um companheiro. -- Mas, olhe -- dizia o diretor --, não tome o exemplo dele. É um peralta. Quero que o senhor estude e se aplique. Menino bom é meu amigo, sou um amigo do aluno estudioso. Pode ir lá para dentro com o senhor Vergara. E o meu tio me chamou para o abraço. Parecia que me deixava de vez, porque foi com o coração partido que me cheguei para perto dele. -- Estude. Em junho venho lhe buscar. Saí chorando. Era a primeira vez que me separava de minha gente, e uma coisa me dizia que a minha vida entrava em outra direção. O colégio de Itabaiana criara fama pelo seu rigorismo. Era uma espécie de último recurso para meninos sem jeito. O Diocesano não me aceitara porque estava de matrícula encerrada. Lembraram-se do colégio do seu Maciel, como era conhecido nos arredores o Instituto Nossa Senhora do Carmo. Lá estiveram os meus primos uns dois anos. Voltaram contando as mais terríveis histórias do diretor. Um judeu. Dava sem pena de palmatória, por qualquer coisa. Era ali onde estava agora.

O menino gordo me levou para o quarto de dormir. Era preciso mudar de roupa. O colégio estava vazio. A meninada saíra para a feira com os pais. A casa grande, com um salão cheio de tamboretes, e uma cadeira de braços em frente de uma mesa, em cima de um estrado. Fiquei por ali, com essa dor pungente de quem se sente isolado no mundo. Não tinha de quem me aproximar. Foi quando uma mulher meio velha me chamou: -- Você é primo de Silvino? Era um menino danado, inteligente como ele. Está fazendo figura no Diocesano. O Maciel dava-lhe muito. Tudo por comportamento. Por causa de lição nunca apanhou neste colégio. Foi o melhor aluno de aritmética que tivemos até hoje. O outro irmão não dava para nada. O Maciel se cansava, inchava-lhe as mãos de bolo, mas era o mesmo que nada. Você parece que é bonzinho. Está é muito atrasado. Era d. Emília, a mulher do diretor. Depois começaram a chegar os meninos, uns dez internos. Passavam por mim dizendo: é um novato. E iam-se lá para dentro com as mãos cheias de embrulhos. Traziam os bonezinhos pretos com as iniciais do colégio INSC -- Instituto Nossa Senhora do Carmo. Eu tinha também que comprar meu bonezinho preto, com a pala caída sobre os olhos e as letras douradas. A farda do colégio Diocesano, sim, que era bonita. Farda mesmo de soldado, com quepe e dragonas de oficial. Foram-se chegando os colegas: -- É do Pilar? Primo do Silvino? -- me perguntava um mais velho. -- O meu pai conhece muito o seu avô; compra gado a ele. Eu sou do Sapé. Estive com o Silvino aqui no colégio um ano. Zé Baú, o irmão dele, apanhava que só cachorro. Seu Maciel não tinha pena. O velho é uma peste: por qualquer coisa está dando na gente. O Chico Vergara da Paraíba chega a ter a mão azul de bolo: é de manhã e de noite. Estavam chamando para o jantar. Descemos uma escada para a sala de refeições. Uma mesa grande para todos. O seu Maciel na cabeceira, d. Emília e o pai dela de lado, e a negra Paula servindo. Quando me botaram o prato de feijão, recusei: -- Não gosto de feijão. -- Pois é o que o senhor tem de comer aqui todos os dias. Engoli, com um nó na garganta, a minha primeira bóia de prisioneiro. -- Se o senhor quiser escolher comidas, vá para o hotel. Isto com uma voz seca, estridente, atravessando o interlocutor de lado a lado. O resto dos meninos olhando para o prato, devorando a ração num silêncio de igreja. Pareceu-me aí o diretor uma figura de carrasco. Alto que chegava a se curvar, de uma magreza de tísico, mostrava no rosto uma porção de anos pelas rugas e pelos bigodes brancos. Tinha uns olhos pequenos que não se fixavam em ninguém com segurança. Falava como se estivesse sempre com um culpado na frente, dando a impressão de que estava pronto para castigar. A mulher, com uns olhos azuis e uns cabelos de inglesa, era bem mais simpática. Percebia-se também que a fúria de seu marido ia até as intimidades domésticas. O pai, o seu Coelho, era um boêmio, uma dessas velhices que trazem sempre consigo o pouco juízo da mocidade. Mas tudo isto eu viria a perceber depois. Quando saí da mesa os meninos me cercaram. Ainda com os olhos vermelhos do choro, respondi às perguntas.

DOIDINHO - J. L. do RegoOnde histórias criam vida. Descubra agora