As Asas da Mamãe

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     - Mamãe, tô com uma dúvida.

     Foi a única frase com mais de uma palavra que disse no carro. Agora precisava esperar, iam descer, arrumar as coisas e já já conversavam. Sabiam que, quando começava assim, a explicação precisava ser completa para a menina se dar por satisfeita.

     A mãe, jovial, aprendera a esperar o momento certo e a ajeitar a linguagem para se comunicar com as crianças. É uma daquelas boas professoras que sabem o segredo de guardar para si a infância que seus aluninhos deixam cair pela sala. No final do período letivo, as crianças tinham crescido quase um ano e ela, muito sabida, pouco mais que um bimestre.

     Na noite anterior, tinha se sentido mal, há uma semana andava entre enjoos e desejos. Sabendo que não era doença, marcou o médico para o dia seguinte, assim que o marido saísse do trabalho.

     Fizeram os planos: a mais nova ia junto e a maior para a avó. Devia levar o livro de ciências, fazer a lição, comer direitinho, tomar banho e esperar o papai e a mamãe. Televisão, depois. Esse desenho não é para sua idade, esse tudo bem, mas só um. E é para ouvir a vovó, o pai completava o discurso.

     Era um bom casal. Alegres, batalharam para casar e comprar a casa. Estudavam juntos. Juntos educavam as filhas. Aprendiam delas as brincadeiras, como se não as conhecessem. Criavam suas tradições familiares. Tinham até inventado uma oração que recitavam em jogral antes de comerem. Uma família unida.

   Estavam quase prontos para iniciar o ritual de ir dormir. O pai tinha dado um tapa na louça e colocado na cama a mais pequena, que chegara dormindo. Costumava, porém, deixar para a esposa as explicações. A mamãe tem mais jeito para isso.

    Ele tinha nascido no interior de lá longe. De infância chicobêntica, tez bronzeada, sola dura do futebol descalço, cabelo encrespado e escurecido pelo sol. Sempre que podia, uma vara de pesca na mão. Menino bem apessoado. Em suas bandas, fora eleito garoto-fashion 2000. Deixou a terrinha e veio para a cidade. Podia ter perdido a boa presença espocando o bucho na padaria em que trabalhava. Mas era malandro. Estudou. Transformou sua diversão em trabalho. Assim mantinha a boa forma e a pele morena e guardava nos olhos a cor da serra de sua infância.

    Sentou para ver na tv as novidades do campeonato. Na mesa ao lado, as duas se acomodaram para conversar.

    - Pronto. Qual era a sua dúvida?

    - O que é ave?

    - As aves são... - procurava as palavras - são animais que têm asas. Os passarinhos são aves.

     Deu o conceito claro e emendou toda a explicação que lembrava de suas aulas, sabia que a filha gostava de muitos detalhes. A menininha quieta ouvia tudo. Passaram pela taxonomia, as classes e ordens, pela morfologia das asas...

     Do sofá, o pai acompanhou a conversa até ouvir a palavra "passarinhos". A partir daí seguiu uma sequência de pés, poeria, estilingues, arapucas... O sorriso de canto revelava por onde ia sua imaginação.

     - Entendeu?

     - Aham! Ainda bem, ufa!

     - Por que "ufa!"?

     - É que achei que a vovó tava brava hoje.

     - Como assim?

     - É que depois da lição a gente foi jantar, fez o em-nome-do-pai e antes de rezar ela falou: "ave Maria".

     - ...

     - Mas agora entendi. Maria é a mamãe do céu, né? Então pra ir pro céu precisa de asas. Ela é a ave Maria.

     Concluiu seu silogismo e saiu movendo os braços abertos como num balé dos cisnes. Até o papai olhou, levou um susto e largou o estilingue. Essa avezinha não! Levantou-se e deu-lhe um abraço.

     A mãe riu-se da confusão:

    - Amanhã a gente conversa melhor. Agora, espertinha, vai voando pra cama!

    Não disse mais nada. Pousou uma mão sobre a barriga ainda sorrindo. E deixou que o papai divagasse com os suiriris e os biguás. E que sua menina sonhasse com as asas da mamãe do céu.

   

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⏰ Última atualização: Oct 26, 2015 ⏰

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