Sob a Sombra do Chapéu

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Aqui na casa de repouso para idosos onde me encontro, tem um jovem enfermeiro chamado William. Este jovem rapaz há tempos me pede para contar a história do meu passado, e há tempos eu conto. Contudo, tem uma história que sempre finjo não existir. No entanto, William é um bom rapaz, e acho que vou contar a ele o que aconteceu. Não vou contar, propriamente dito, vou deixar um manuscrito, e assim, quando eu me for desse mundo, o garoto pode ler a mais tenebrosas de minhas histórias.

Todos evitam me dizer o que está acontecendo com meu velho coração, mas não sou mais uma criança, sei que ele não aguentará por muito mais tempo.

Pedi para William me trazer um caderno e uma caneta. Ele me trouxe essa tarde, e agora estou com ambos em mãos, que tremem um pouco devido a minha idade avançada. Meu quarto está na penumbra, pois apenas o abajur está ligado, e sua luz amarelada não ilumina lá grande coisa.

Levanto-me de minha cama, meus ossos e músculos parecem protestar. Ando vagarosamente até a escrivaninha no canto esquerdo e sento-me cuidadosamente na cadeira dura. Passo a mão na folha do caderno; ela me parece seca, assim como minha garganta.

Estou um tanto relutante em escrever isso. Não sei o motivo, mas uma grande parte de mim não quer escrever. Honestamente, não faço isso para William. No princípio até pensei que fosse, mas agora vejo que não. Se fosse apenas pelo rapaz, voltaria atrás e esqueceria toda essa bobagem. Contudo, antes de partir, quero fazê-lo, é como se fosse minha última tarefa nesse mundo, como se fosse meu último ato.

Seguro a caneta com minha mão, e finalmente a pouso no papel, para contar a história de como meu irmão desapareceu.

* * *

A segunda grande guerra tinha terminado há poucos anos, e eu não passava de um garotinho. Meu irmão, Michael Webber, era três anos mais novo do que eu. Portanto ele tinha apenas oito anos.

Morávamos em uma casa grande vitoriana afastada da cidade. Meu pai trabalhava nas fazendas da região, e tanto eu como Michael passávamos o dia todo nos divertindo no grande espaço que rodeava nossa casa. Um dia esse grande espaço tinha sido uma plantação de milho, mas agora não passava de um terreno sem serventia. Minha mãe sempre dizia que meu pai cuidaria da terra novamente, mas nem eu nem Michael acreditávamos nisso.

Para nós, tanto melhor, pois tinha mais espaço para corrermos.

Michael era mirrado, tinha cabelos castanhos, como os meus. Seu nariz era pequeno, e suas orelhas grandes. Eu o chamava de rato, na intenção de provocá-lo, mas ele nunca se importou. Nunca foi dado a coisas triviais.

Nos últimos dias, Michael estava estranho. Raramente corria, não comia como era de costume, reclamava ao ajudar a mãe nas tarefas diárias e se irritava facilmente. Poucos dias depois dava preferência por ficar na cama. Todos estranhávamos, mas ele não parecia estar doente, parecia apenas fatigado, e minha mãe disse que era culpa do terrível verão pelo qual passávamos.

Nunca acordei durante a noite. Isso nunca fez parte dos meus costumes. Entretanto, naquela semana, acordei por duas vezes, aparentemente sem motivos. Não vi nada de anormal assim que abri os olhos. Nosso quarto continuava o mesmo, com nossas duas camas iluminadas pelo luar que entrava pela janela aberta devido ao calor. Dormíamos no sótão, que era onde crianças como nós gostávamos de ficar. Nosso quarto era uma verdadeira bagunça, e hoje em dia me pergunto como conseguíamos dormir naquele lugar.

No entanto, na terceira noite em que acordei de madrugada, vi que Michael estava olhando através da janela. Seu pequeno corpo estava iluminado pela pálida luz da lua, e ele tinha algo de fantasmagórico. Senti um leve tremor, ainda deitado.

Sob a Sombra do ChapéuOnde histórias criam vida. Descubra agora