Último capítulo

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Como chegara até ali ela bem sabia. Andando, oras! Do alto do prédio onde se jogara, subiu pelas escadas. Queria aproveitar os últimos momentos de clausura em sua vida nada pessoal -- como todas as vidas existentes, aliás -- contando degraus. Não era um hobby que exercia, mas se apropriara dele nos momentos que antecediam seu grito de liberdade.

Antes de subir as escadas, havia feito uma minuciosa seleção do lugar ao qual usaria como seu último ponto de parada neste mundo nada-livre. Escolhera o Top Windows não por ser o mais alto, ou mais importante, mas simplesmente porque daquele topo ninguém havia se lançado. Nunca havia sido a primeira em nada, nem a melhor, nem a escolhida. Queria ao menos uma vez em sua vida ser a primogênita; daí a escolha do edifício.

Não havia pensado em sua vida até ali chegar. Andava de forma decidida, distraída, pelas ruas rodeadas de arranha-céus e Mundaneums, observando a pressa das pessoas que corriam, com rumos mas sem razões; de corações cheios de temor, mas sem sonhos a contar; sentindo-se sozinha. Observava a arquitetura do lugar, e pensava consigo mesma: há quanto tempo não visitava a cidade enquanto o Sol brilhava? De onde saíra, o albergue no qual vivia há alguns meses depois da briga com os pais, apenas costumava dormir: e o fazia durante o dia.

No albergue, tomara uma decisão: não levaria nenhuma lembrança consigo. Deixara tudo na pequena cômoda que pertencia a ela: carteira de identificação, cellsmart, hologramas e quaisquer coisas que vinculassem sua existência ao mundo; o que importava estava consigo sem necessidade de provas físicas. Suspirara, antes de tomar a decisão. Os motivos eram muitos, mas naquele momento não precisava enumerá-los. Necessitava apenas de coragem; coragem essa que conseguiu na noite anterior enquanto trabalhava.

Precisava ser livre e aquela era a única maneira de conseguir.

*~*~*~*

Seu trabalho demandava um quê de ilegalidade ao qual nem todas as pessoas estavam preparadas. Trabalhando neste meio há um bom tempo, desrespeitar as leis -- que eram muitas, aliás -- era algo que nem sequer lembrava enquanto executava suas tarefas. Naquela noite, a mesma noite em que a coragem em presentear-se com sua liberdade havia mostrado seu risonho rosto, junto de seus companheiros, que ligavam tão pouco, ou até menos, para a ilegalidade do que faziam, havia executado com precisão irrefutável uma tarefa de dificuldade complicada, a qual não se julgava capaz de concluir.

Roubaram, por encomenda, um diamante valioso em um banco de ações -- coisas daqueles tempos, onde os papeis de nada mais valiam --, após abrirem diversos portais e entrarem de forma sorrateira pelo cofre onde estava a pedra, jazendo no chão como se não tivesse o valor que as pessoas lhe estimavam. Parecia cansada, cansada de ser vista como algo além do que era.

Uma pedra.

Teoricamente simples, a tarefa mostrara-se não muito generosa em seu modus-operandi. Entre senhas e firewalls, os tortuosos caminhos que seus dedos eram obrigados a percorrer tornavam-se cada vez mais emaranhados e entrelaçados, criando padrões incoerentes que, não fosse sua experiência no cyberambiente, já teriam delatado sua presença não muito bem-vinda nos path-gardens alheios. Era necessária para abrir os portais e deixar que seus companheiros pegassem o que deveriam pegar.

A coragem havia mostrado-se logo mais cedo, durante o caminho ao prédio em que se infiltrariam, ao olhar os rostos tristes e cansados, cujos olhos, cobertos pelos cyberglasses, denotavam o vazio das almas mesmo que não estivessem à vista. Pessoas conversavam em sua volta para casa, presas à necessidade de voltarem aos seus Mundaneums. Não conheciam a cidade, não sabiam de outros lugares além de seus trabalhos e Mundaneums, não nutriam relações por pessoas de fora desses lugares e não aprofundavam a ligação com as pessoas que conheciam. Em um mundo superlotado, viviam todas sozinhas, com seus PersonalRobots sempre presentes em seus cellsmarts, sem conhecer aos outros e a si próprias. Percebera-se presa em um sistema que, embora estivesse tentando se esquivar, sempre a pegaria ao final de tudo.

Percebeu que apenas estaria livre quando estivesse livre de sua vida.

Suspirou. O mundo em que vivia àquelas alturas era bem diferente. Arriscado, intenso, verdadeiro e divertido. Perdera a conta de quantos portais já abrira, quantas contas já hackeara, quantas pessoas tinha obliterado a existência. E não se sentia culpada, não senhor! Todas as vezes em que era avisada por seu cellsmart que novos créditos haviam surgido em sua conta bancária, sentia-se feliz. Mas sabia que era uma felicidade momentânea, assim como todas as coisas que créditos poderiam comprar.

Era algo que normalmente Roberta, uma das executivas de seu bando, falava ao receber seus créditos “fico feliz todas as vezes em que recebo esse aviso, mas logo me entristeço sabendo que não poderei fazer muita coisa com esses créditos.” Assim como todos os expatriados de Mundaneum, tanto ela, como Roberta, não podiam comprar coisas em muitas lojas. Isso, mais que um incômodo, era uma prova de que não eram parte da sociedade regida pela segurança, uma prova de que preferiram viver suas vidas com o mínimo de livre-arbítrio que os cabiam naquele lugar.

No carro, que os levavam ao local do roubo, estavam as pessoas de sempre. Roberta e Adam, os executivos; Leandro, Milena e Danilo, os olheiros; e, por fim, o suporte técnico, formado por Andrew e por ela. Milla. Aquela seria a única tarefa da noite e, quando receberam a notícia de que seriam eles o bando a executá-la, a única pessoa a ficar feliz com o assunto foi Milena -- o que era bem normal. Milla chegara àquela noite ao covil onde se encontrava com seus companheiros, o bar Porto do Pirata um tanto deprimida. Não havia acordado muito bem e não se sentia inspirada a fazer qualquer coisa. O que via nas ruas também não a animara, pelo contrário, apenas piorou seu estado depressivo. Sempre que se punha a observar as ruas, era exatamente a mesma coisa: pessoas fingindo serem felizes quando, na verdade, suas almas gritavam por auxílio, quando suas almas gritavam por liberdade. Estaria ela assim, também? Vagueando enquanto tentava chegar ao Porto do Pirata sem com que lhe fizessem o desagradável pedido de sua autorização de circulamento naquele determinado horário, Milla iniciara sua reflexão.

Ainda que não gostasse de dias chuvosos, andar por aquela noite cinzenta era melhor que se declarar indisposta e se manter dentro do albergue de expatriados insípido e nojento.

Aquele dia havia amanhecido cinza.

E Milla odiava cinza.

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⏰ Última atualização: Nov 05, 2013 ⏰

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