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      Apesar do nome francês, eu e meus pais somos 100% americanos. O nome Le Blanc chegou na minha família quando os franceses fundaram a Port-Royal, atual Anápolis, cidade natal dos meus avós paternos, em 1604. Um garanhão francês, vulgo meu tatara tatara avô se apaixonou por uma linda americana, vulgo minha tatara tatara avó, e a partir daí a família foi surgindo. Por conta dessa descendência quase que desconhecida, meus pais decidiram que iríamos aprender francês e nos mudar para Anápolis logo depois de eu completar 9 anos. Pouco tempo depois, estávamos vivendo como típicos franceses.
      No meu 20° aniversário, nós fomos à um restaurante francês. Estava tudo perfeito. A familia perfeita, o dia perfeito, a vida perfeita. Aquele foi o primeiro dia que eu disse pra mim mesma que eu era feliz. Na hora de voltar para a casa, a noite já havia tomado conta de toda a cidade. Meu pai morria de medo de dirigir à noite, então ele só colocava o cinto de segurança e acelerava, olhando apenas para frente. Do banco de trás do carro, com a minha cópia de Madame Bovary nas mãos, eu lia as placas de aviso na rua. A cada placa que eu via, era um estrondo no carro. Placa de lombada, e o carro pulava tão forte a ponto de eu sentir dor nas costelas; placa de buraco, e o carro descia com tanta violência que eu conseguia sentir cada pedra que o pneu esmagava.

- Ralentissez, chère* - minha mãe pedia e por mais que sua voz estivesse tranquila e suave como sempre, eu sabia que estava preocupada, assim como eu.

Respirei fundo e abri meu livro, tentando me distrair. Foi quando me assustei com uma buzina extremamente alta. Não deu tempo nem de eu conseguir enxergar o que havia acontecido... Não deu tempo de enxergar nada.
      Tudo estava preto e por um momento eu pensei que estivesse morta, mas não estava. Ouvi um som distante, como de uma sirene, que se aproximava aos poucos. Depois de me esforçar por conta da claridade que agora a noite me causava, consegui abrir meus olhos. Eu estava cercada por pessoas que usavam branco. Foquei minha visão no fundo da mulher que estava na minha frente e vi um caminhão capotado, uma ambulância e um grupo de bombeiros. Foquei minha visão, desta vez atrás do caminhão, e vi o carro do meu pai com a cabine completamente destruída. Minha respiração começou a acelerar e eu tentei levantar, mas não consegui. Foi quando me dei conta que eu estava em uma maca, cheia de proteções e com um colar cervical em volta do meu pescoço.

  - Calma, menina, devagar. - a mulher, que eu havia reconhecido como enfermeira, me dizia enquanto me ajudava a me deitar empurrando delicadamente meus ombros. - Nós vamos te tirar daqui, está bem?

   Eu olhava em volta, procurando pelos meus pais até finalmente encontrá-los. Estavam um ao lado do outro, estirados no chão, de olhos fechados e com feridas pelo corpo todo. Um homem do corpo de bombeiros os cobriu com um tipo de lona antes que eu pudesse tentar fazer alguma coisa. Uma lágrima escorreu pela lateral do meu rosto. Aquele sentimento de felicidade que eu sentira horas antes já estava longe, bem longe dalí. Quando a maca cruzou a esquina para chegar onde a ambulância estava, eu avistei uma última placa: "Pare", e o carro não parou.

   Fiquei sob observação durante três dias. Eu havia sofrido ferimentos leves pelo simples fato de estar no banco de trás.

   - Teve sorte, são poucos que se salvam de um acidente como este. - o médico disse enquanto olhava minha ficha
   - Meus pais morreram no dia do meu aniversário e a única razão de isso ter acontecido é o meu aniversário. Esse é o seu conceito de sorte, doutor? - era a maior frase em inglês que eu falava em anos. Ele respirou fundo.
    - Deus quis que você ficasse, por algum motivo, Ele te escolheu. Isso é ter sorte. - ele respondeu e eu ri. - Deus não falha, menina. Tudo bem, abra os olhos.
    E uma luz extremamente clara tomou conta da minha visão esquerda.
    - Deus tem uma forma engraçada de testar as pessoas.
    Desta vez a luz dominava minha visão direita.
     - Sua falta de fé não te ajudará. - ele disse enquanto ouvia meus batimentos cardíacos.
     - Eu não disse que não acredito.

    Ele olhou pra mim e eu não desviei o olhar. Parecia estar procurando a fé dentro dos meus olhos e eu não tenho certeza se encontrou ou não.

    - Seus pertences estão na recepção. Pode sair a hora que quiser. 
   
    Eu fiquei olhando pra ele até se retirar por completo do quarto em que eu estava. Olhei pros lados e já não tinha mais nenhum aparelho conectado à mim. Eu me levantei, coloquei uma roupa que o hospital havia me oferecido, peguei meus pertences e chequei minha carteira. Tinha alguns dólares, o suficiente para chegar em casa.
    Procurei as chaves extras em baixo do tapete e abri a porta. Não parecia a minha casa. Estava silenciosa, sombria, e os móveis só deixavam o lugar ainda mais vazio. Andei em direção à cozinha e olhei as horas. 10h13 da manhã. Mamãe já estava de pé preparando o café, mas eu não sentia o cheiro dos pães assando, nem do café na cafeteira. Eu não sentiria nunca mais.
    Permanecer ali significaria conviver com o fantasma da minha família pra sempre, automaticamente convivendo com a falta deles e o sofrimento que me causava, então decidi voltar para Seattle, duas semanas depois do acidente.

* Devagar, querido

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⏰ Última atualização: Nov 03, 2015 ⏰

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