O Samba

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Toda sexta-feira lhe era sagrada. Não somente pelo trabalho, que definitivamente enobrecia sua alma (caso raro hoje em dia), mas por um motivo diferente. Era algo que acontecia mais à noite, quando a cidade lentamente adormecia após uma jornada frenética e barulhenta. Quando ele deixava o trabalho, às seis da tarde, a luz já havia desaparecido no horizonte, seguida pelos carros que se dirigiam para suas garagens, como se programados fossem.

Alguns sons se entregavam ao silêncio. Outros surgiam animados, ansiosos, trazendo alegria a todos os corpos cansados da luta do dia. E é destes sons que ele mais gostava. A melodia que convidava todos a dançar. Movimentando pernas, cinturas e braços. Era a melodia do samba. O ritmo que unia homens e mulheres, negros e brancos, ricos e pobres. Transformava a tristeza e as agruras da vida em sentimentos de liberdade, alegria e perdão.

Já não existiam problemas, ou se existiam, não seriam mais resolvidos ali, naquele momento. Tudo que importava era a música. E a música também reunia os amigos. Pessoas vindas de todos os lugares, celebrando uma incorruptível comunhão social. As diferenças criadas de dia eram esquecidas à noite. O censo comum prevalecia. Um censo de felicidade.

O local era um boteco. Assustador à primeira vista. As paredes de reboco mal acabadas e a fraca luz interna determinavam um aspecto humilde e simplório. Mas a impressão era só aparente. Os quitutes eram baratos, mas extremamente saborosos. A cerveja vinha em copo americano, mas era a mais gelada da região. O ambiente era propício para o samba, era um retorno às raízes já esquecidas.

Ele se sentia confortável, livre, até mesmo influente. A impressão era de extravasar. Não havia diferenças claras entre os que freqüentavam aquele lugar. Os gatos eram pardos, guiados pelo ritmo incessante do samba que modificava vidas. Mas ele não era o protagonista principal daquela verdadeira festa. A harmonia era determinada por outros personagens. Os instrumentos eram os reis, fluindo uma linda melodia pelos ouvidos de todos os presentes. Era cavaco, era pandeiro, era violão. Eram muitos outros. Reinavam incontestáveis naquela magia orquestrada.

Os músicos eram meros coadjuvantes. Ele também havia se tornado um. A cuíca deslizava continuamente por seus velozes dedos. Todos eles saudavam os deuses do samba numa homenagem genuína e honesta.

Era um clima de festa absoluto. Era uma sexta-feira de alegrar os corações mais aflitos. Uma música era entoada. Não uma música qualquer. Um verdadeiro clássico do samba. "Volta por Cima" do grande negro Noite Ilustrada. Os instrumentistas caprichavam na execução. Era preferência unânime tocar músicas daquele sambista. Era o porta-voz daquela noite. E foi quando aconteceu...

"Peeena de mim, não precisaaava...". A letra do samba corria solta quando um carro parou na frente do boteco. "Ali onde eu choreeei...". Todos continuaram cantando, era mais um freguês, o movimento estava ótimo aquele dia. "Qualquer um choraaava...". Mas o homem que desceu do carro não era qualquer um. Noite Ilustrada, o próprio, estava parado ao lado do carro ouvindo seu samba tocar. A música parou de repente. A surpresa era geral. O silêncio preencheu o recinto. Todos olhavam aquele negro em um misto de alegria e timidez. Foi quando Noite Ilustrada encheu os pulmões lentamente e soltou em alto e bom tom: "Dar a volta por cima que eu deeei...".

Foi um momento mágico. O estampido para que todos os braços e vozes voltassem a se mexer. Todos completaram em uníssono: "Quero ver quem daaava...". E nesse entusiasmo todo, Noite Ilustrada puxou uma cadeira e se sentou. E cantou com todos pela noite adentro.

A alegria estampada nos rostos perdurou por muito tempo. Até hoje esta história é contada nas mesas de boteco. Uns dizem que ele faria show numa cidade próxima e parou para comer algo no caminho. Outros garantem que seu samba entoado naquele bar lhe chamou a atenção e o fez parar. Ninguém sabe ao certo a verdade. O fato é que naquele tempo, ter ou não sucesso não influenciava a humildade de um homem. Naquela sexta-feira, numa noite como qualquer outra, o samba foi celebrado por homens e lendas. E só quem estava lá pôde se lembrar.

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