Estranho quando a única certeza é o estar.
Eu só estava lá, em algum lugar deitado.
Passei um longo tempo perdido no vazio da minha consciência, tentei de forma inútil abrir os meus olhos e descobrir onde eu estava, mas nada adiantava, então simplesmente fiquei lá, esperando.
❇
Horas mais tarde, eu ouvi. Bem baixo, um sussurro ao longe. A voz de uma mulher.
- Retomou a consciência. - ela disse, longe. - Os dedos movem, vê? - de repente, me lembrei deles, eu os estava movendo mesmo. - Devia falar com ele, talvez ele vá até você.
Barulhos mais baixos ainda que me esforcei para ouvir ecoaram em minha cabeça.
Senti um toque em minha mão. A mão de outra pessoa, a mão, provavelmente, dela.
-Posso... - uma pausa longa acompanhou a voz daquela mulher, a mulher que eu amava, a voz dela eu reconheceria em qualquer lugar, mesmo no mais profundo de minha mente.
Era reconfortante ouvi-la, queria estar ao lado dela, ela poderia me explicar, ela poderia me trazer de volta, me livrar dessa escuridão, Marta sempre foi minha luz...
Então tudo veio à tona. Eu me lembrei. Lembrei da descoberta, da confusão toda que se fez, da batida no carro, o motivo por eu estar ali. Ela era o motivo por eu estar ali.
- Posso ficar a sós com ele? - a ouvi perguntar.
Ouvi o barulho tão longe de uma porta se fechando. Agora sozinha comigo, senti sua mão acariciando meu rosto. A sensação era estranha. Tão terrível e tão maravilhoso de sentir, um misto de saudade com ódio.
Um lado de mim implorava por me libertar da prisão que me encontrava, para a envolver nos meus braços e o outro lado implorava também, mas para que eu fugisse, me afastasse...
Senti cair em minha bochecha uma gota, uma lágrima.
Aquilo tudo estava acabando comigo. De repente, me odiei por ter recuperado a consciência, as lembranças retornavam. Ela me traiu, a mente gritava. Por 11 anos!
Queria estar cheio de torpor, me esfriar e não sentir.
O pior de tudo era que eu não sabia que sentimento mais me preenchia. Eu simplesmente não conseguia odiá-la, ficar magoado sem ao mesmo tempo amá-la tremendamente com todo o meu ser.
- Deus, - ela falou baixinho, porém com uma seriedade tão grande. - por favor, não o leve. Por favor! - implorou. - Por favor, não o leve. Ele não tem culpa de nada, é tudo culpa minha. Me leve em seu lugar, eu não me importo. - ela fungou. - Deus, ele nem precisa ser meu marido novamente, traga ele pra mim e o faça feliz, mesmo que seja longe de mim.
Ela ficou mais alguns minutos murmurando alguma coisa e depois senti que ela beijou minha bochecha com ternura, depois a acariciou.
- Eu sinto muito. - ela murmurou acariciando minha bochecha com as costas da mão. - Será que algum dia você vai me perdoar? - ela falou com pesar. - Eu me arrependo... - ela deu um suspiro pesado. - Eu te amo.
Então ela se foi, ouvi o barulho da porta e eu fiquei em silencio perdido em minha própria consciência. Ainda conseguia sentir seu toque em minha pele, a sensação tão terrível e tão maravilhosa, um misto de emoções indescritível.
Lembrei-me da primeira vez em que eu a toquei.
Não tinha nem feito 18 anos e ela era a garota mias linda que eu já tinha visto. Tinha saído com ela algumas vezes escondido de seus pais, mas naquele dia estávamos tomando sorvete na antiga praça da cidade, desafiando a tudo e todos, sem medo de sermos descobertos.
Ela terminou de tomar seu sorvete e ficou em silencio com os olhos arregalados olhando pra frente, eu perguntei a ela o que tinha acontecido, ela apontou para um homem do outro lado do parque em uma barraca de lanches. E então ela me falou que era seu pai.
Ela olhou pra mim alarmada, não queria que ele nos visse, talvez ainda desse tempo para fugir, sem pensar muito peguei em sua mão e saímos correndo, logo o desespero se tornou em risadas, saímos correndo até o meio de algumas arvores que ficavam no parque, paramos pra respirar.
Me encostei em uma arvore e ela ficou à minha frente. Nos olhamos, soltamos mais algumas gargalhadas, e então elas diminuíram e ficamos nos olhando com seriedade um para o outro, seu olhos terrivelmente claros me encaravam com intensidade, apertei minha mão e me lembrei que ainda segurava a mão dela.
Ela olhou para nossas mãos, levantei sua mão e a levei até meus lábios, ela fechou os olhos e sorriu.
Soltei sua mão, ergui meus braços e a puxei para mim, ela ficou rígida e depois amoleceu em meu abraço, ficamos ali em silencio sentindo a presença um do outro. Um momento de êxtase, de descoberta. Ela finalmente estava em meus braços.
Me perguntei se aquele momento deitado naquela cama de hospital seria a ultima vez em que a tocaria, que seria tocado por ela.
Ela não estaria mais em meus braços, ela não seria mais minha. Me perguntei se algum dia eu poderia superar aquela dor que apertava meu peito.
Do jeito que eu estava, eu nunca poderia perdoá-la.
❇
Os dias se passaram dessa forma.
Ela chegava, pedia a Deus pela minha vida, pedia e pedia que eu não fosse embora, que ela só queria me ver bem. Me abraçava, chorava em meu ombro, pegava m minha mão, beijava-a. Seria que ela sabia que eu podia senti-la? Será que ela sabia que a todo momento que ela me tocava, eu sentia meu corpo queimar?
A cada dia era uma sensação nova. O meu corpo começava a reagir, um pé, uma mão, a cabeça. Cada dia era uma alegria nova para ela e para a enfermeira que ficava comigo. Era certo que eu estaria de volta em alguns dias.
Eu comecei a lutar bravamente contra mim mesmo, contra o torpor em mim, para que eu pudesse voltar e reagir, e fazer alguma coisa.
Era terrível aquela sensação de estar preso em mim mesmo. Eu estava ali, mas ainda assim, de alguma forma, longe.
Foi sem esforço algum eu acordei e abri meus olhos para aquele quarto absurdamente claro que fez queimar minhas vistas.
Uma porta, uma poltrona, um violão no canto do quarto, uma bíblia no criado mudo ao meu lado, aparelhos que falavam de minha situação eram as coisas que preenchiam meu quarto.
Me virei de lado sentindo meu corpo todo doer e dormi.
Acordei horas mais tarde. Abri meus olhos e ali estava ela.
Os olhos dela brilhavam de alegria, um sorriso fraco no rosto. Assim que a vi, eu me esforcei pra dar o meu melhor sorriso. Um pequeno puxão em cada canto dos meus lábios
Ela se aproximou e beijou minha testa, se afastou e me olhou com intensidade.
Seus cabelos castanhos escuros estavam presos em um coque e ela tinha os olhos vermelhos que revelavam incontáveis noites mal dormidas.
- Oi. - ela murmurou fracamente.
Fiquei parado a encarando sem saber se eu a responderia, se eu seria capaz de respondê-la.
-O-oi... - respondi, a voz saiu arrastada, raspando lá no fundo da garganta.
- Renan está lá fora. - ela falou. - Ele quer te ver.
Eu balancei a cabeça devagar, ela se afastou de mime voltou acompanhada do meu filho.
Ele correu até mim e me abraço com dificuldade, todo o meu corpo sentiu uma dor latente, mas eu não me importei com isso, só de estar com ele, de senti-lo perto de mim, vali por qualquer dor.
Sendo ou não meu filho legitimo, eu amava aquele menino com todas as minhas forças. Nada no mundo poderia substituir o lugar que ele tinha dentro do meu peito.
A mãe dele nos deixou a sós, ele puxou a cadeira, pegou seu violão e passou as próximas horas tocando musicas pra mim, preenchendo o quarto com sua doce voz, preenchendo o vazio da minha alma.
❇
Mais alguns dias no hospital e depois recebi alta.
Marta e eu não tínhamos conversado a respeito de nada sobre o que aconteceu. Foi um assunto que ficou pairando no ar, mas aquela raiva que eu sentia, aquele nojo, tinham ido embora, foram substituídos por aquele misto de dor e amor que eu sentia toda vez que ela se aproximava.
Eu sabia que não podia voltar pra casa, talvez eu nunca voltasse. Toda vez que eu começava a pensar nisso, minha cabeça parecia que ia explodir, então eu fingia que nada tinha acontecido.
- Marta... - murmurei quando saímos do hospital com a minha mala.
Ela me olhou com os olhos esperançosos, era a primeira vez que eu falava seu nome depois do ocorrido.
-Sim? - ela tinha um sorriso naqueles lábios, aquilo me destroçou mais ainda.
- Eu não vou pra casa. - o sorriso nos lábios dela, naquele instante sumiu - Eu vou ficar na casa de um amigo.
Ela olhou para o chão como uma criança culpada, ia falar alguma coisa, mas então preferiu o silencio, balançou a cabeça concordando.
Ela me levou até a casa do meu amigo e me observou entrar.
Quando fechei a porta atrás de mim, meus lábios tremeram, minhas mãos começaram a suar e eu desabei no chão ali mesmo, aproveitando o momento sozinho.
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Ficar?
Random"Eu poderia fingir que meu casamento foi perfeito a vida inteira e ser feliz, voltar e ignorar tudo o que aconteceu. Assim todos nós seriamos felizes novamente. Mas seria uma falsa felicidade. Será que é mais fácil aceitar a mentira e ter a falsa fe...