~ Dragonologia ~

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Talvez não houvesse volta para o que estava prestes a fazer.

Pensei na ironia da situação. Ajoelhado naquele quarto. O mesmo onde, um ano atrás, encontrara o corpo inconsciente do meu irmão. Os médicos disseram que ele havia entrado em coma e que não havia uma previsão segura de quando acordaria – isto é – se acordasse. O motivo era um mistério para os doutores. Nenhum dos exames havia identificado qualquer problema.

"Tudo o que podemos fazer é esperar", eles disseram.

Na volta do hospital a inconformação costurava-me os lábios. Retornara ao quarto na tentativa de compreender o que acontecera. No cômodo havia apenas uma poça de cera derretida onde antes talvez estivesse uma vela e o caderno que meu irmão usava para a faculdade. Peguei-o e folheei suas páginas. Cada matéria preenchida com cálculos e conceitos. Na última matéria porém, o nome escrito me chamou a atenção. Dragonologia. Aquele nome encabeçava dezenas de páginas preenchidas com anotações vagas, desenhos de serpentes e dragões.

A princípio não fui capaz de compreender aquelas ideias, mas com algum estudo logo comecei a decifrar os mistérios que envolviam o seu coma até chegar a esse ponto – de joelhos, na exata posição em que ele estivera.

Vinha me preparando há meses para aquele momento. Aprendera cada palavra do ritual, sua pronuncia e significado. Estudara a história. Coletara cada item necessário. Estava finalmente pronto.

As anotações do meu irmão eram claras. O primeiro passo era pedir a permissão da deusa suprema. A matriz. A grande mãe primordial.

Reverenciei o pequeno altar – era preciso demonstrar respeito. Levantei a cabeça. Fixei o olhar no alvo. A chama da vela seria a minha bussola, me guiaria pelo caminho draconiano.

Iniciei a pronúncia das palavras impregnando-as com a força da minha vontade. Por fim, reverenciei o fogo uma segunda vez e aguardei. Alguns segundos se passaram. Então um arrepio percorreu-me a espinha. Havia obtido a permissão.

Sentei-me cruzando as pernas. Respirei fundo. Aquela fora a parte fácil. Sabia o que viria dali pra frente. Meu irmão anotara metade das sensações físicas que me acometeriam caso tivesse sucesso no ritual.

O pavio incandescente marcava minha retina e, ainda que não houvesse vento, pude perceber que a chama dançava. Concentrei-me em seus movimentos. Aquele era o caminho que precisava seguir.

De acordo com as anotações do caderno não existia um trajeto físico a ser percorrido. Não havia uma distância. Era algo semelhante a uma pessoa e sua sombra, em essência estavam conectadas, só que em planos diferentes. Não seria de todo adequado alcunhar esse mundo como a sombra do mundo draconiano... mas sim, essa analogia era a mais próxima da verdade.

Na medida em que a dança do fogo me parecia mais confortável e acolhedora um zumbido agudo surgia em meus ouvidos. Formigamentos espalhavam-se por todo o meu corpo. O escuro ao redor da vela ficava cada vez mais denso.

Minha respiração caiu inconscientemente para metade do comum, era uma sensação aterradora, mas já estava preparado para aquilo – a sensação da morte; meu irmão havia nomeado.

A partir daquele ponto não existiam mais registros. Pensei nos riscos de ir em frente. Na dor que poderia causar aos meus pais... Então pensei no meu irmão, que ficaria inconsciente pelo resto da vida. Deixei de lado todas as duvidas. Ele precisava de mim.

O meu propósito era sólido. Firme. Inabalável.

A escuridão se fechou sobre os meus olhos, mas não havia breu. Havia chegado ao mundo draconiano.

"Então você também conseguiu."

Busquei direções de onde a voz pudesse ter vindo, mas não havia esquerda ou direita, em cima ou embaixo. Havia apenas "aqui", como se eu estivesse em todos os lugares ou... todos os lugares estivessem em mim. Tentei falar, mas a falta de senso de direção e espaço me atrofiou a voz. Como falar? A quem falar?

"Ah, me desculpe, você ainda não esta acostumado."

Fui tomado por uma brusca sensação de queda. Luzes passaram aceleradas diante dos meus olhos até que me vi nos arredores de uma vasta planície verdejante.

Estava de volta ao meu corpo. Sentia minhas mãos e pernas, mas a sensação era estranha, algo formigava por baixo da minha derme como se ela fosse... inapropriada.

Então, uma bruma ascende do chão até alcançar minha altura. A névoa se condensa numa forma humanoide. Era meu irmão – tinha certeza. Mas havia algo muito diferente em sua constituição. Seus traços haviam mudado desassemelhando-o das feições humanas. Sua pele revestira-se de pequenas escamas feitas de um material que remetia a fumaça sólida. Os olhos castanhos agora refulgiam em azul. Asas gigantescas descansavam dobradas por detrás de suas costas. O detalhe mais paradoxo porém, era o sorriso em seus lábios.

"Irmão!", diz ele enquanto se aproxima de braços abertos. Seu abraço é apertado, mas não chega a ser constrito.

"Oque está acontecendo?", pergunto estupefato.

"Você chegou ao plano superior", diz ele como quem já esperava a pergunta. "Bem vindo ao mundo draconiano".

"Mas... mas... Seu corpo. O coma. Nossos pais."

"Coma?", ele arqueia as escamas de onde deveriam estar a sua sobrancelha.

"Você está em coma há um ano", digo. "Vim para levar sua alma de volta."

Seus olhos flamantes me encaram por alguns segundos.

"Hmm... Não preciso voltar", diz ele. "O coma deve ter sido um pequeno erro."

"Um pequeno erro?" Grito. "Nossos pais estão sofrendo por causa dessa situação", agarro seu pulso sentindo a aspereza de sua pele. "Você vem comigo querendo ou não". Puxo-lhe o braço, mas sua solidez escapa em névoa por entre os meus dedos.

Um trovão ribomba no céu.

Meu irmão balança a cabeça em negação.

"Você ainda não está pronto", foi a última coisa que disse antes de desfazer-se em fumaça.

Chamas irrompem por todo o meu corpo. Tudo ao meu redor desaparece. A sensação da queda é pior dessa vez e meu peito dói como se atravessado por um punhal.

§

Naquele exato instante uma criança foi gerada. No mesmo dia, o garoto foi encontrado morto.


#FantasiaBR















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