Capítulo 1

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A chuva fraca da segunda feira começou às nove, embasando o vidro do prédio e me trazendo aquela sensação de liberdade, eu sei, me mudei para o lugar com o tempo tão variado quando a própria cidade, os projetos e balanços sobre a mesa estavam me tirando o sono, os novos engenheiros não estavam familiarizados com as obras, era difícil conciliar sono com trabalho. Afastei a cadeira e segui até a janela, afrouxei a gravata e passei a mão nos cabelos suspirando, era final de maio em Seattle, eu sempre gostei dessa cidade, quando fiz doze anos decidi que queria ser engenheiro, estudei nas melhores universidades e me mudei pra cá a alguns anos, eu tinha basicamente o que todos queriam, um apartamento luxuoso, carros a minha disposição e uma empresa de sucesso, o que faltava? Sempre falta alguma coisa. Escutei o telefone tocar e saí de meus devaneios, respirei fundo e atendi a ligação, embora eu já soubesse do que se tratava.
-Sim Luma? Ela respirou pesadamente do outro lado da linha antes de responder.
-Senhor, Josh está aqui. A voz quase sussurrada ao telefone indicava que ela estava extremamente cansada, normalmente ele entrava sem bater e a deixava furiosa, mas ultimamente ele tem se mantido calmo, ou pelo menos tem tentado.
-Pode deixá-lo entrar. Coloquei o telefone em cima da mesa e continuei olhando o nada, esperando que as portas duplas se abrissem, ele entrou pela sala devagar e sentou em uma cadeira com os cotovelos sobre a mesa, fiz o mesmo.
-Eu não posso ajudar com o novo projeto. Ele começou, senti o cheiro do álcool e posicionei os cotovelos para frente, entrelaçando os dedos para tentar diminuir a raiva.
-Josh, você sabe o quanto esse projeto é importante. Ele se levantou, mal podia ficar em pé, balançou a cabeça de um lado a outro como se pra espantar alguma dor e se sentou de novo, olhando para o chão.
-Matheus eu tive um problema, mas não posso te contar agora, só preciso de alguns dias, volto de viagem na semana que vem.
-Vegas? Perguntei, ele se levantou e foi em direção a porta, fechou os punhos e a acertou duas vezes, eu não podia perder a calma, me levantei esperando a resposta dele.
-Não fala sobre essa merda, eu já disse, preciso de alguns dias. Ele tinha uma pequena marca roxa abaixo do olho, por uma briga que tivemos na semana anterior, eu já sabia o que aconteceria se brigasse com ele, peguei o telefone sem dar uma resposta e disquei um número.
-Luma, chame um táxi, Josh vai precisar de um. Ele se virou prestes a brigar quando eu cedi.
-Tudo bem, vá para onde quiser. Voltei a me virar pra janela e ele ficou me observando por alguns minutos, a chuva continuava e parecia se estender ainda mais forte, ele cambaleou com os passos devagar batendo contra os móveis e saiu, respirei fundo e peguei as chaves do carro, precisava sair dali, abri as portas duplas e fechei o mais rápido que consegui, Luma estava com uma feição triste, ela sabia que eu e Josh éramos como irmãos, e ultimamente não nos entendíamos em nada.
-Cancele meus compromissos da tarde, não volto mais hoje.
-Sim senhor. Ela respondeu com a voz baixa e sussurrada, andei depressa até o elevador cumprimentando eventualmente alguém que passava, meus pensamentos estavam indo a direções que eu não queria, fechei os olhos tentando manter a cabeça ocupada enquanto os andares passavam, assim que sai no estacionamento fui direto para a SUV preta e dei partida, saí pela rua a procura de um bar, eu sei, era cedo demais pra beber, mas eu não sabia que outra saída eu tinha, acelerei e cheguei a um bar no centro, estacionei e desci do carro, a rua estava deserta, a chuva molhou parte da minha camisa, andei mais rápido e abri a porta de vidro, o lugar não estava cheio, tinha dois caras conversando perto da mesa de sinuca e mais um grupo de umas oito pessoas perto da pista de dança, era cedo demais, eu já disse isso, olhei para os lados enquanto sentava em uma bancada, um garçom se aproximou de mim e perguntou qual era o meu veneno, demorei alguns instantes para entender do que ele falava, ele continuou esperando a minha resposta, meus pensamentos estavam a três anos atrás, automaticamente apertei a ponta do balcão até que a dor dos dedos espantasse o resto das lembranças.
-Desculpe, o que você disse?
-Perguntei o que iria beber! Ele pegou um pano e passou sobre o balcão, me olhou novamente e depois para os lados, ele parecia um pouco distraído.
-Uísque duplo com gelo. Ele se afastou e eu me virei para olhar o grupo de oito pessoas conversando animadamente do outro lado do bar, eles não tinham mais que vinte anos, e riam tão alto quanto a música que tocava ao fundo. O rapaz de cabelos e olhos castanhos voltou logo depois, encheu um copo e deixou a garrafa ao lado, ele parecia saber que eu não ia querer só aquela dose, peguei o copo e virei em um gole só, aquele líquido desceu rasgando em minha garganta, mas a sensação era boa demais para que eu parasse, o garçom nem esperou que eu pedisse outra e tornou a encher meu copo, as imagens me inundavam e eu só queria esquecer, tomei aquele copo ainda mais rápido, a risada daquelas pessoas me atormentava, e eu fui trazido de volta por um barulho, uma bancada ao lado da minha que se moveu tão rápido que eu nem consegui acompanhar.
-Yuri, preciso de ajuda. Ela tinha uma voz tão suave, era um contraste interessante para o estilo dela, e me virei um pouco para olhá-la, ela vestia calças apertadas na cintura e largas na parte de baixo, e uma camiseta preta que mostrava parte da barriga, era algum estilo de Hip Hop ou qualquer coisa assim, pousei meus olhos por pelo menos dez segundos naquela barriga sarada, e depois subi os olhos até o rosto dela, merda, ela estava me olhando, tinha olhos tão pretos e cabelos castanho escuro e longo, a pele morena, e ela não me olhava como qualquer uma me olharia, ela parecia nem se importar pelo fato de eu estar encarando-a.
-Qual o problema Thay? O rapaz perguntou e ela voltou o olhar para ele, eu não consegui parar de olhar para aquele rosto e notei que ela parecia inquieta, ela me olhou pelo canto do olho e fez sinal para que conversassem em outro lugar, Yuri foi até a ponta do balcão e a abriu para que ela entrasse, e eles sumiram pela sala a frente. Esperei um minuto até que eles voltassem, mas não aconteceu, estiquei meu braço querendo pegar a garrafa, meu copo estava vazio e isso significava que eu teria que enchê-lo, a garrafa estava longe do balcão, me debrucei em cima dele tentando alcançá-la, as pontas dos dedos tocaram o vidro gelado e eu a puxei, minha visão ficou turva, tudo começou a rodar e luzes pareciam piscar constantemente em meus olhos, o barulho dos estilhaços me trouxe de volta.
-Tudo bem eu pago por isso. Falei cambaleando ao me levantar, que papel de idiota eu estava fazendo.
-Vou chamar um táxi. Yuri disse.
-Não. Eu vim de carro. Depois que a frase deixou minha boca me senti um babaca, eu estava bêbado e prestes a dirigir pela cidade, Thay me olhou por um momento e um sorriso cruzou os lábios dela, como se ela acabasse de achar um jeito para seja lá o que for que ela estivesse pensando.
-Thay não faça isso, eles ainda podem estar atrás de você.
-Tudo bem Yuri, eu preciso sair daqui antes que cheguem, não se preocupe. Ela o abraçou e passou uma das mãos em seu rosto.
-Não tem como não me preocupar com você.
-Eu vou ficar bem, enquanto isso, cuide da Annie e da Liv por mim. O tom dela era de tristeza, as vozes estavam ao fundo mais eu ainda conseguia ouvi-las quase que nitidamente.
-Fique com isso. Ele deu um celular a ela e a abraçou novamente, seja o que for que estivesse acontecendo ali, era uma despedida. Coloquei o dinheiro na mesa e tentei levantar.
-Seu carro esta no estacionamento? A voz suave me preencheu, fiz que sim com com a cabeça não entendendo o que aquilo significava, ela me puxou pelo braço, mas não estávamos saindo pela porta de entrada, eu a segui até um corredor estreito em cores verde, ou cinza, eu não sei, tudo estava se embaralhando em minha cabeça, uma luz forte quase me cegou quando ela abriu uma porta de ferro no final do corredor e saímos, andamos por alguns segundos e ela parou em minha frente.
-Preciso das chaves. Meus olhos mal se mantinham abertos, ela soltou um ar pesado e tateou rápido o meu bolso, pegou a chave e destravou o alarme.
-Belo carro.
-Obrigado. Foi só o que consegui responder, ela abriu a porta e nós dois entramos, eu não sabia bem o que estava acontecendo, mas ela parecia estar fugindo de alguém, depois de olhar rapidamente no espelho e para os dois lados ela ligou o carro e saiu dali. Me apertei contra o banco, ela estava acima do limite de velocidade, mas eu não achei que seria uma boa idéia dizer isso a ela. Encostei a cabeça no acento e virei o rosto um pouco, de modo que consegui observar cada parte daquele corpo, tudo nela era convidativo, a voz, o cheiro, a adrenalina, tentei me concentrar em não dormir, mas estava difícil me concentrar em qualquer coisa, e tudo que pude fazer foi fechar os olhos.

Ouvi um som alto de risadas vindo de algum lugar, meus olhos estavam fechados e pesados, eu mal podia abri -los, pensei estar sonhando, e meu sonho tinha cheiro de perfume feminino e olhos pretos marcantes, forcei minha mente a se concentrar no que havia acontecido e abri os olhos devagar, as cortinas estavam fechadas e eu não fazia idéia de que horas eram e nem de quanto tempo eu havia dormido, o barulho da música disparou e eu me sentei, tentei alcançar meu celular, a única luz acesa era a do abajur perto da mesinha no canto, minha cabeça latejava e eu me dei conta, eu não tinha sonhado, estive naquele bar, olhei em volta e não vi minhas chaves, fixei meus olhos no celular até que ele parasse de tocar, eu não estava a fim de falar com Josh agora, queria voltar a realidade e entender o que tinha acontecido.
-Merda. Falei, um pouco mais alto do que gostaria, era quase cinco horas da tarde, eu dormi por quase seis horas, o que estava acontecendo comigo? Joguei o celular na cama e tomei dois comprimidos que estavam perto da cama, Dafne sempre pensa em tudo, respirei devagar e tomei um banho quente, eu já não estava com a aparência de um bêbado fracassado como antes. O celular voltou a tocar, era dona Christin, eu já tinha evitado falar com ela por toda a semana. Atendi.
-Oi mãe.
-Matheus o que aconteceu com você e Josh? Olhei pela janela algumas vezes, não havia mais chuva, mas o tempo continuava nublado.
-Ele precisa de um tempo, e foi o que dei a ele.
-Filho... Não deixei ela terminar, eu já sabia onde isso ia dar, ouvi vozes ao fundo, tinha alguém na cozinha, no andar de baixo, além de Dafne e Josh ninguém mais tem acesso a minha casa.
-Mãe, não se preocupe tanto, eu ligo pra você depois. Me apressei e fui até as escadas, a voz ficava mais forte a medida que eu me aproximava, Dafne não estava sozinha.
-Você está com uma cara horrível. A olhei, sem entender o que estava acontecendo, ela estava sentada na bancada, comendo panquecas e sorrindo como uma criança brincalhona, as duas me olhavam, enquanto meus olhos correram pela escrita em cinza na camiseta dela "Dance and Life". O peito dela subia e descia devagar enquanto ela me olhava. Respiração tranquila, uma calma esmagadora.
-Quem é você? Perguntei, como se não soubesse realmente quem ela era, mais eu queria saber mais, porque ela ainda estava ali?
Pensei por um instante que ela me daria uma explicação imediata, mas ela se ajeitou na bancada e começou a sorrir, os dentes eram brancos e bem alinhados, naturalmente perfeitos, fechei a cara, ou ela achava que eu era extremamente engraçado ou me achava um idiota.
-De nada por salvar sua tarde envergonhada de porre. Fiquei quieto, parado feito um babaca, e quando eu abri minha boca para dizer alguma coisa o celular dela tocou, ela olhou no visor e o sorriso desapareceu no mesmo momento, uma expressão fria e cautelosa tomou o rosto dela, ela se afastou um pouco e atendeu, a voz era baixa mais eu ainda conseguia ouvir.
-Pode falar... estou segura... Ok, eles sabem sobre mim?... Vou resolver isso. E ela desligou, aquilo não fazia sentido nenhum, depois de alguns segundos ela se virou para mim, alguma coisa estava terrivelmente errada com ela, e por algum motivo idiota, eu queria saber o que era.
-E porque me salvou? Perguntei.
-Digamos que... nós ajudamos um ao outro. Ela olhou em volta, para os quadros espalhados nas paredes, seus olhos se iluminaram enquanto ela analisava de perto, eu queria dizer alguma coisa, mas não disse, ela era intrigante, e misteriosa.
-Eu preciso ir. Ela disse de repente e se aproximou, senti o cheiro daquele perfume de perto, quando o rosto dela ficou a centímetros do meu, olhei para os olhos pretos marcantes e depois para a boca que sorria travessa, ela me tirava do sério, e eu senti uma vontade forte de agarrá lá e eu beijá-la contra aquela bancada, e como se lesse meu pensamento ela alargou o sorriso e sussurrou perto do meu ouvido.
-Foi um prazer conhecê-lo Scalian. As pessoas sempre me chamam pelo sobrenome na empresa, mas vindo daqueles lábios travessos e tão sinceros, aquilo pareceu o certo a se dizer, ela se afastou no mesmo momento e foi até a porta, eu a segui, e antes que ela fechasse a porta, sorriu mais uma vez, e desapareceu.

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