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Há dias que uma espécie de tristeza me invade e, então, certas memórias tomam conta de mim. Em um instante, toda minha vida pare e passar como em um flash.

Lembro-me de quando, ainda bem pequeno, mas bem pequeno mesmo, um toquinho de gente ainda, minha mãe me chamava sem paciência. Não sei o quê, mas parece que sempre havia uma coisa errada.
Acho que eu pensava que era comigo!

Faz tampo tempo, mas é como sr tivesse sido ontem. Lembro que eu tremia quando papai gritava na mesa! Era estranho! Dava medo! Sempre parecia muito barulhento.

Chegou a hora de ir à escola. Eu não queria ir. Minha mãe me deu banho, sem paciência, como sempre.

- Vamos, menino, ligeiro, pare de brincar com a água. Coloque essa roupa - Tudo isso sempre aos gritos e fazendo alguma coisa pela casa.

Depois, fomos apressados para a escola. Ela cumprimentava as pessoas pela rua. Aí, era outra pessoa, falante e bem humorada, enquanto comigo era só aos puxões. Minha mãe é quem carregava a pequena mochila. Chegamos

- Olha que menino lindo! Você vai gostar. Olhe quantas crianças. Temos muitos brinquedos - Era uma senhora para quem não olhei e cuja fala me soava falsa. Lembro-me de minha mãe indo embora e me deixando lá com uma outra tia que eu nunca tinha visto e que foi me puxando pela mão. Lá dentro, havia várias outras crianças. Eu não quis brincar, preferi ficar com a tia. Acho que descobri que cuidaria de mim. Então ficava ao seu lado o tempo todo.

Mas fui crescendo e era difícil ficar quietinho como a tia queria. Comecei a pensar que ela não gostava mais de mim.

Um dia, um menino me mordeu no braço. Recordo-me que fiquei meio sem reação. Mas não aconteceu nada com ele. Quando minha mãe chegou pra me buscar na escola, fui logo mostrando:

- Olha aqui mãe, olha aqui! - Mas minha mãe nem deu bola! Acho que foi a primeira vez que, assim que cheguei em casa, fui para o quarto e chorei baixinho e sozinho. Nem estava mais doendo. Mas havia uma coisa dentro de mim. Será que foi a última? Não!

Outra vez, quando vi meu pai brigando. E como ele era bravo! Creio que não havia ninguém mais bravo que ele. Eu saía de perto. Dava medo.

Depois de uma briga de papai, tudo ficava quieto lá em casa. E assim continuava por uns dias.

Durante o dia, quando estava em casa, ficava bastante só. Quem sabe eu ficava melhor sozinho. Brincava sozinho. Adorava meus soldadinhos de faz de conta. Eles sempre batiam um nos outros e um deles é quem tinha feito algum mal para um dos outros, e por isso apanhava. Apanhava muito, às vezes até quebrava. Bom, pelo menos não faria mal a mais ninguém.

Acho que estava com uns sete anos quando a escola ficou séria. Minha letra era horrível! Perdi meu caderno umas três vezes. E, claro, sempre apanhava de minha mãe quando isso acontecia. Ah! E ela sempre ameaçava: - Vou contar para seu pai. Mas nunca contou, do contrário ele teria me batido, com certeza. Mas foi nessa época que comecei a ser líder. Eu escolhia quem iria participar de qual time de futebol na hora do recreio.

Foi em um desses recreios quando briguei pela primeira vez. Um menino franzino me acertou jogando bola. Parti pra cima dele e o esganei. Lembro-me da sensação de raiva e poder. E fui gritando com ele imitando meu pai:
- Isso é pra você aprender a não se meter com quem não deve! - e repetia.

A monitora viu, separou a gente, pediu que eu não fizesse mais aquilo, mas ficou nisso. Minha mãe nem ficou sabendo. Depois desse dia ganhei moral: todos me respeitavam mais e eu comecei a gritar mais com todos, acho que até com a monitora.

Lá em casa, tudo continuava igual ou pior. Meu pai vivia sumido. E era frequente estar bêbado. Mas acho que era melhor assim, porque quando ele estava em casa, os ânimos sempre se alteravam. A briga começava sem motivo.

- Pega um copo de água pra mim.
- Eu não, você está sem fazer nada. Levante e pegue você.
- Estou descansando.
- E daí, grande coisa. Preguiça tem limite.
- Preguiça o caramba, sou eu quem faz tudo nesta casa. Não fosse eu, vocês iriam ver. Quero ver como vocês se arrumariam.
- Faz tudo o quê? Ninguém sente sua falta aqui! - e aí começava a baixaria.

Um dia, inesperadamente, apareceram duas mocinhas lá em casa. Foi um choque! Foi quando descobri que minha mãe já havia sido casada e eu tinha outros três irmãos. Ou melhor: duas irmãs e um irmão. Moravam noutra cidade. Nunca vi minha mãe tão desconcertada e nervosa, mas não brava.

- Filho, estas são suas irmãs, de quem falei! - era mentira, ela nunca havia falado nada. As duas disseram seus nomes, mas eu estava tão chocado que não consegui guardá-los ou não quis. Cumprimentei-as com um aceno e sem erguer a cabeça. Elas falaram algumas coisas, mas eu fiquei tão bolado que não escutei nada. Não pronunciei nenhuma palavra sequer.

Descobri que minha mãe tinha largado o primeiro marido com três filhos pequenos porque se apaixonou por outro cara, que era o meu pai. Eu era fruto dessa aventura da minha mãe que não tinha dado certo. Quer dizer, eu acho que nunca deu certo. Harmonia era a última coisa que eu via entre meu pai e minha mãe.

O tom das minhas irmãs não parecia muito amistoso. Pareceu mais uma cobrança que uma visita. Meu pai mal as cumprimentou e, naquela noite, ele não voltou. Então eu dormi na cama com minha mãe. Minhas irmãs dormiram no meu quarto. Bem, acho que na verdade ninguém dormiu!

Minhas irmãs me olhavam de canto de olho, mas não conversaram comigo. Com minha mãe elas trocaram algumas poucas palavras, mas não teve nenhum abraço ou beijo.

- Sinto muita saudade de vocês. Não dia que não passe pensando em vocês. - Embora minha mãe estivesse falando coisas bonitas, pareciam não ser verdadeiras, ao menos eu não acreditava. No outro dia, logo cedo, foram embora.

Minha mãe estava nervosa como nunca a vi. Não lembro porque, mas nesse dia ela furiosamente me bateu por algo insignificante. Quando meu pai chegou, ela também partiu para cima dele, mas aí a conversa era outra. Meu pai acabou batendo nela. Eu não senti nada. Acho que estava enraivecido com tudo. Eu também queria bater, mas nos dois. Senti-me traído.

Nunca mais na vida tocamos no assunto da primeira família de minha mãe e de seus outros filhos. Mas passei a achar que eu poderia ter sido a causa de tudo. Penso que cedo aprendi na prática o significado de culpa: é quando se é responsável por algo que não há jeito de se consertar.

ToscoOnde histórias criam vida. Descubra agora