Capítulo 4

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  Minha mãe sempre diz que se algo de ruim aconteceu no seu dia e você fica "prevendo" que o resto dele vai ser pior, ele realmente é.

Lembro-me muito bem da primeira vez que ouvi isso.

Eu tinha uns dez ou onze anos. Nunca fui do tipo que ficava trancafiada em casa criando A sociedade das Barbies, sempre gostei das brincadeiras de "menino", como futebol, carrinho de controle remoto e essas coisas que dizem que meninas não podem brincar. Eu estava toda feliz brincando de pique-esconde com os meus vizinhos, quando fui correr para me esconder, escorreguei em uma garrafa pet amassada e caí com a cara no chão. Perdi um dente - de leite, graças a Deus (ou a minha idade) - fiquei com a cara toda arranhada e toda roxa. Fui reclamar pra minha mãe, falei que meu dia tinha sido horrível e ela veio com aquele "Ah, mas ainda são 15:45, vai melhorar" e eu, trouxa, acabei acreditando. Tudo estava colorido novamente. Na hora do jantar ela me deixou tomar meu sorvete preferido e assistir à televisão, comer na sala era um milagre. Subi as escadas correndo, cantarolando de alegria a cada degrau, mas, quando eu cheguei no topo da escada, tropecei nos meus pés e meu sorvete voou da minha mão e caiu inteirinho no chão. Desde então, tento ser a pessoa mais realista do mundo: quando as coisa têm que dar errado, elas dão.

Bom, era nisso que eu estava me segurando agora, tudo tem um motivo.

Era pro Hugo ter beijado o meu destruidordecelulares.

Era pra eu ter visto.

A voz de Fernando me desperta.

- Aura?

- Eu ainda gosto dele, Fê... - sussurro

- Vem, vamos sair daqui.

Ele puxa meu braço e eu continuo os olhando.

Hugo percebe e olha diretamente pra mim. Ele se levanta, mas eu dou as costas pra ele, para aquilo tudo.

- Aura, tá tudo bem?

- Tá sim... é que aquilo foi totalmente inesperado - forço um sorriso.

- É... foi mesmo - diz ele, me abraçando - Não fica assim, sei que é meio clichê, mas vai passar.

- Ah... eu sei, sempre passa.

Caminhamos em silêncio até o ponto de ônibus.

Minha cabeça estava a mil, mas eu ia guardar tudo pra quando eu fosse dormir. Era melhor assim.

Quando cheguei em casa, ignorei as perguntas animadas da minha mãe e depois ignorei as brigas pelo troço no meu nariz.

Subi pro meu quarto, me joguei na cama e fechei os olhos.

Um motivo pra ir pro intercâmbio: fugir disso.

Eu só conseguia pensar naquele beijo. 

Hugo 1/destruidordecelulares 1/Aurora 0.

Nunca pensei que seria trouxa. Na verdade, a gente é trouxa porque quer.

Às vezes as coisas são tão previsíveis pra mim, mas isso foi totalmente inesperado.

Fico pensando se o que eu sinto por Hugo é realmente sentimento ou atração. Mas como se sentir atraída por alguém que te traiu, te machucou?

Ahh...

O bipe no meu celular me tira a concentração.

Desconhecido: Ei branquinha...

Desconhecido:  A gente pode conversar?

Só uma pessoa me chamava assim: Hugo.

Aurora: Ah Hugo, me deixa em paz!

Hugo: Eu preciso te contar umas coisas, por favor...

Aurora: Pode falar, ué

Hugo: Pessoalmente?

Aurora: Afff!

Aurora: Quando?

Hugo: Agora, olha sua janela.

Me levantei lentamente, atrasando o inevitável. E, como era esperado, lá estava ele.

A unica coisa que eu queria fazer era pegar todos os meu livros e jogar pela janela até que ele morresse.

- Mas que merd...

- O assunto é sério - diz ele, sorrindo.

- Sobe logo.

Ele fazia muito isso quando namorávamos, já está acostumado.

Quando ele entra, me apresso pra fechar a janela.

Sento-me na cama e espero a explicação.

- Então?

Aqueles grandes olhos azuis me observam.

Cabelo solto e molhado, a blusa branca destacando muito bem seu tom de pele.

Sem detalhes, sem detalhes.

- Desculpa pelo que você viu hoje... - ele passa a mão no cabelo - É que eu precisava te contar uma coisa...

- Pode falar.

- É que... - ele suspira - Eu sou gay.

Eu não sei o que falar, pensar.

- Mas... e o que a gente teve?

- Sim, eu sei que a gente namorou bastante tempo...

- Olha, não tem nenhum problema em ser gay. Mas que porra é essa?

- Desculpa... sério.

- Primeiro você finge que gosta de mim e agora beija o menino que eu to afim. Mas que merda...

- Deixa eu explicar... - diz ele,  envergonhado - Eu precisava disso, eu precisava saber o que eu queria. Eu me apaixonei por você, mas eu percebi que eu não gostava daquilo. Eu não fazia a minima ideia de que você conhecia o Luiz...

- As duas pessoas que eu supostamente tenho um quedinha são gays. Valeu, mundo!

- Você tem uma quedinha por mim?

- Claro! - digo, apressada- Quer dizer... tinha.

Ficamos conversando por mais um tempo.

Falamos até sobre Angels do The xx, musica do nosso relacionamento.

Como eu sentia falta disso.

Depois de entender o lado do Hugo, a raiva passou.

- Bom, agora eu tenho que ir. Passa um dia lá na loja pra gente conversar mais.

- Vou passar sim!

- A propósito, o Luiz não é gay, ele é bi. Pode ficar, foi só um casinho - ele pisca pra mim e vai embora.

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