Nós, gatos, somos conhecidos por nossa elegância e por sermos extremamente convencidos de nossa beleza. Somos conhecidos como seres independentes e pouco amorosos. E em certos lugares, chegam a nos transformar em comida ou então, nos abandonam como se fossemos descartáveis, nos dão seu ódio e todo seu desprezo também. Eu, Vênus, sou um desses gatos que citei por último. Fui abandonado por minha família há alguns meses atrás, quando um bebê chegou. Ao me botarem dentro de um transporte, pensei que estava indo ao veterinário ou até para passar uns dias em um lugar diferente, mas foi algumas horas depois de terem me deixado na calçada, que percebi que nunca voltariam para me buscar e comecei a tentar escapar.
Eles costumavam me chamar de filho, neném, príncipe e de vários outros apelidos extremamente carinhosos. E quando eu fazia algo errado, me chamavam de Sushi. E eu sabia que iria acabar com um castigo. Às vezes, me deixavam um dia inteiro sem comer. Ou então, um dia inteiro sem ganhar um afago atrás de minhas orelhas compridas e amarelinhas. Mas, o pior castigo, era quando me seguravam em algum lugar que me incomodava e davam alguns tapas em meu bumbum.
Passei alguns dias quieto dentro do transporte em que me abandonaram. Tinha medo. Ouvi falar que naquele lugar tinha muitos cães perigosos. E eu estava muito magrinho para brigar com eles. Acho que todos os gatos dali tinham medo. Viviam dentro de caixas. Às vezes, saiam para comer e nunca mais voltavam. O líder deles era enorme, acho que toda comida que encontravam ia diretamente para ele. Suas patinhas eram brancas como as minhas, mas o restante de seu pelo era acinzentado e com manchas pretas. E percebi também que havia vários gatos por ali parecidos com ele. Provavelmente, eram alguns de seus filhotes.
Quando eu tomei coragem o suficiente para sair do transporte, me arrepiei inteirinho. Os gatos eram enormes. Alguns deles tinham feridas que me davam medo só de olhar. Perto deles, eu parecia um filhote. E se parar para pensar bem, eu realmente devo ser. Eu não sei quantos anos eu tenho. Isso é o tipo de informação que os humanos escondem da gente. Eles também nos escondem quem são nossos verdadeiros pais. Escondem-nos porque estamos ali. E também costumam nos esconder porque nos abandonaram. Eu acho que sei porque me deixaram.
Era um dia como todos os outros. Acordei bem cedinho. Andei por cada canto da casa e procurei por minha comidinha. Ela não estava lá. E minha caixinha de areia também não. Ora, o que fizeram com minhas coisas? Será que eu deveria ir chamar por minha mãe humana? Fui até seu quarto e encontrei a cama bagunçada e roupas jogadas por toda parte. Será que saíram com pressa e esqueceram-se de cuidar de mim?! Minha última esperança era tentar tirar mais um cochilo até que eles chegassem. E foram horas e horas de cochilos, miados e choramingos. Minha barriguinha doía de fome quando eles chegaram. E tinham nos braços alguma coisa embalada. Alguma coisa vermelha e que não tinha patinhas bonitas como as minhas.
Os humanos botaram a coisa vermelha e estranha deitada em cima de algumas almofadas e ficaram ao seu lado a observando como se fosse quebrar a qualquer momento. E quando eu cheguei perto, bem, eles se lembraram de mim. E foi ai que decidiram que eu deveria vir morar com todos os outros gatos que também foram abandonados. Será que eles também vieram parar aqui por causa do ser sem patinhas?! Mas, continuando, o meu pai humano me pegou pelo meio das costas, no que restava de pele em meu corpinho, pois o restante estava tomado por uma barriga bem grande e que costumava estar cheia de comidinha. Eu pensei que fossem me apresentar ao novo animal de estimação deles. Ou então me mostrarem onde está minha comida, pois eu estou com muita fome.
Ele me levou até a garagem e me forçou a entrar no transporte. Estava sujo e com um cheiro ruim. Qual foi a última vez que ele lavou aquilo? Quem ele pensa que é pra me pôr aqui? Fiquei bem quietinho, estava assustado e deixei que ele me levasse. Fomos de carro até lá. E ao passar onde ele queria me deixar, não teve o trabalho nem de abrir a porta e me pôr no chão com carinho. Ele abriu a janela o suficiente para empurrar o transporte para fora. E eu tive que ficar algum tempinho tentando o fazer virar de forma que eu conseguisse ver onde eu estava. E, ah, aquilo doeu. Acho que uma de minhas patinhas está machucada. Pensei que ele iria cuidar quando viesse me buscar, mas, bem... Fazem três meses que estou aqui. Acho que a coisa vermelha é a nova dona dos meus pais humanos.
Os dias em meu novo lar passavam lentamente. Meu pelo estava sujo e minha barriguinha começava a diminuir. Eu tinha poucas horas de sono, porque os gatos maiores queriam me bater e me expulsar dali. Eu os ouvia falando que eu não deveria estar ali sem a permissão do líder. Mas, afinal, como eu iria convencer alguém a me ceder sua casa pelo resto da vida? Ou pelo menos até meus pais me buscarem? Preferia passar o dia inteiro dentro de meu transporte, que acabou se tornando uma casa para mim e para uma filhote que apareceu ali a alguns dias atrás. Ela estava assustada. Acho que também foi abandonada. Ela correu em minha direção e eu pensei ter visto uma versão minha um pouco menor e mais magrinha. Por isso, a deixei ficar. Durante a madrugada, quando todos os gatos estão dormindo, eu saio de fininho e a levo ela comigo. Nós caçamos ratos, baratas e às vezes conseguimos até pássaros e lagartos. Voltamos para casa com nossa barriguinha cheia e com tempo o suficiente para ninguém perceber que saímos dali.
Eu passei muitos meses nessa rotina incansável. Minha patinha ainda doía e às vezes, eu não podia sair para caçar com minha amiguinha. Ah, por falar nela, demoramos algum tempo, mas finalmente demos um nome pra ela. Seu nome é Mimi. É um nome bonito, não é? Mas, me deixe terminar de contar. Faltavam alguns dias para o natal chegar. Era o meu primeiro natal longe de um lar e eu estava extremamente triste. Mimi e eu saímos até mais cedo para caçar porque eu não pretendia voltar para casa essa noite. Eu iria, provavelmente, ir parar debaixo de algum carro ou então deixar os gatos maiores me baterem até que a morte chegasse para mim. Era difícil não ter comidinha num potinho. Até que, enquanto eu segurava um rato para que a Mimi pudesse comer, uma humana se aproximou da gente. Ela era bonita, muito bonita. Estava escuro, mas eu consegui ver que seus cabelos eram enormes e amarelos, iguais ao meu pelinho. Ela abaixou perto de mim e eu quis correr dali, mas a Mimi não se mexia, acho que estava encantada pelo rato e eu não iria deixa-la ali. Foi difícil, assustador e pensei que estava indo para outro lugar que iriam me machucar. Mas, não.
Faz oito anos que estou na casa da minha nova mãe humana. Ela continua linda, incrivelmente linda. Aqui também tem uma criatura vermelha, que eu descobri que se chama Melina e que ela é um bebê. A Mimi está maior do que eu, você acredita? Ainda somos inseparáveis. Finalmente minha patinha está melhor. Minha barriguinha aumenta a cada dia que passa e aqui eu tenho certeza que nunca vão me machucar novamente. Mas, espero que todos os meus amiguinhos gatos e também os que não gostam muito de mim, consigam um lar também. É difícil para nós, gatos, admitirmos, mas nada é melhor do que um afago atrás de orelha e que uma casa quente e confortável para cada um de nós.
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A Estranha e Curiosa Vida dos Gatos
Short StoryAnimais de todos os tipos são abandonados e adotados todos os dias, por tanto, meu foco é falar sobre como cada um deles lida com essas situações. Desde o amor até a dor e ao medo. O foco, obviamente, são gatos. Eles são vistos como independentes...