Muitas pessoas pensam que a vida de um gato (ou de qualquer outro animal) dentro de um abrigo, é uma vida feliz e satisfeita. Mas, nós gatos, sabemos muito bem que é triste e assustador quando vemos alguns de nossos amigos serem levados para sabe se lá onde. Nossa única certeza é: eles não voltam e nós também iremos para lá um dia. A gaiola em que estou é bem grande, mas, somos muitos gatos no mesmo lugar, por tanto, é apertada também. Ouvi dizer que alguns de nossos companheiros foram levados ontem. Um de cada gaiola. E nenhum deles voltou. Ouvimos seus pedidos de ajuda e uns miados insistentes por algum tempo, até que eles simplesmente pararam.
Alguns de nós foram abandonados. Jogados a própria sorte. Outros nasceram já nas ruas. Viveram por muito tempo lutando até que adoeceram ou então foram obrigados a vir para cá. Eu nasci aqui. Minha mãezinha fugiu pra cá, pois sua barriga estava muito pesada. E as pessoas na rua passaram a pôr veneno onde ela costumava se alimentar. Todos os meus irmãos e irmãs foram adotados, um deles inclusive pôde acompanhar a nossa mãe. Eu, por ser totalmente pretinho, não posso sair daqui. Ouvi as tias que cuidam da gente conversarem sobre dia das bruxas. E o perigo que isso representa para um gatinho preto.
Eu sou lindo, confesso. Meus pelos são enormes, meus olhos são de um azul impressionante. E eu sou bem grandão. Chego até a ser pesado, sabia?! As gatinhas são apaixonadas por mim. E alguns gatinhos também. Quando algumas pessoas vem aqui nos visitar, trazer doações ou então levar um de nós para casa, ficam um tempão me encarando. Acho que eles têm vontade de me levar para casa, mas tem medo que eu fuja para a rua. Quem dera eu pudesse contar que eu nunca terei coragem o suficiente para visitar a rua ou se quer o quintal de suas casas.***
Trabalhar em um abrigo de animais nunca foi o meu sonho. Obvio, eu sabia que fazer faculdade de medicina veterinária seria um desafio enorme. E que eu provavelmente passaria por coisas horríveis. Mas doía muito ter que passar 06 horas por dia forçando a morte de centenas e centenas de animais. Alguns lutavam pela vida. Choravam, gritavam, tentavam vencer o efeito da eutanásia. Eu sabia que seria melhor para eles. Eram todos magrinhos, doentes e raramente tinham o que comer. Chegavam a ponto de não sentir falta de comida, pois acostumavam com a ausência da mesma. Sabiam que podiam insistir por um ou dois dias que não iriam conseguir nada além de broncas.
Os dias passavam devagar. Era doentio jogar vários animais dentro da mesma caixa até que ela estivesse cheia o bastante para alguém vir pegar e jogar diretamente no lixo. Como se aquilo fosse apenas um resto. Algo que nunca teve vida ou sentimentos. Literalmente, um lixo. Eu tinha sonhos com aquilo. E o tempo inteiro, o choro de cada gatinho que já matei, rondava minha cabeça e me impedia de fazer algumas tarefas simples. Mas, eu não podia deixar de fazê-lo. Esforçava-me para crer que, um dia, eu iria salvar muitos animais e que todos esses que fui obrigada a sacrificar, estariam realmente bem no céu dos gatos.
Hoje era um dia difícil. Haveria muitas mortes. Ao invés de conversarem comigo pessoalmente ou pelo menos por um telefonema, me enviaram uma SMS com as palavras: "Precisamos que você vire a noite hoje, muitos animais doentes e mais pedidos de resgates, precisamos desocupar espaços. Bjs". Diga-me, isso não é cruel? Nós, quando estamos doentes, até pessoas que não tem nada a ver com a história tentam nos ajudar. Mas quando se trata de nossos bichinhos de quatro patas, é um sacrifício conseguir alguém que realmente se importe com eles.
Ao chegar no abrigo, peguei um dos maiores transportes e passei ao lado de cada gaiola recolhendo gatinhos. Foquei nos mais velhos, nos que eu sabia que não teriam chances de conseguir um lar. Meu coração se partiu ao pegar em minhas mãos o gatinho mais doentinho daquele lugar. Estava bem sujo, com algumas feridas. Mas eu ainda conseguia identificar os olhos azuis e o charme que encantaria qualquer pessoa de bom coração. Eu prometi a ele que um dia iria conseguir adota-lo. E agora, estou aqui. Estou sentada encarando a maca com alguns gatos mortos. Estou encarando o pretinho mais bonito que já tive chance de conhecer em minha vida. Ele foi um dos gatos que morreram sem conhecer o amor, sem ter um lar, sem ganhar um afago atrás da orelha. Isso é culpa minha. E provavelmente também sua. Imagino que tenha sido você que abandonou ou deixou de ajudar alguns de animais por ai, por tanto, espero que sinta a mesma dor que estou sentindo agora.***
Uma tia que costumava cuidar de mim e encarar meus olhinhos sempre, acabou de passar por aqui. Ela pegou vários de meus amiguinhos. Perdi até as contas. Quando ela passou novamente, pegou minhas patinhas e me guiou para dentro de uma caixa lotada. Pensei que finalmente ela estava cumprindo a promessa de me levar para sua casa. De me dar amor. E pensei também que eu iria ganhar o tal afago atrás das orelhas que meus colegas abandonados tanto falavam. Eu fui o primeiro. Ela me tirou da caixa e me deitou em cima daquela maca extremamente gelada. Eu estava assustado. Mas ela me acalmou com alguns petiscos deliciosos e o famoso carinho embaixo do queixo, atrás da orelha e no meio da minha barriguinha. Foi uma delicia, até eu sentir uma leve picadinha embaixo de uma das minhas patas. Tentei me mexer, levantar ou pedir ajuda para a tia. Mas, quando tudo começou a escurecer e a ficar gelado, eu soube que era meu fim. E realmente foi.
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A Estranha e Curiosa Vida dos Gatos
Short StoryAnimais de todos os tipos são abandonados e adotados todos os dias, por tanto, meu foco é falar sobre como cada um deles lida com essas situações. Desde o amor até a dor e ao medo. O foco, obviamente, são gatos. Eles são vistos como independentes...