O gato dormia em um colchão na sala de estar. O colchão havia sido arrastado por três senhoras (uma grisalha, uma ruiva e uma branca) do quarto no segundo andar, empurrado abaixo as escadas e levado até a sala, onde estava o gato – onde ele sempre estaria. Outras duas senhoras o afagavam (uma negra, outra russa), mergulhando nas ondas de seu pelo comprido. Da coxa do gato surgiu uma mão branca e azul, com dedos eletrizados e unhas afiadas. Era Anna, a russa, que escorregou para dentro da pelugem e não conseguiu sair. Princesa, a senhora branca, ajudou Anna.
Não havia móvel maior que o gato. Sua barriga ocupava todo o colchão de casal; as patas e rabo pendiam para o tapete persa esmigalhado pelo afiar de unhas. O rabo do gato atravessava a porta para a cozinha, se enroscava em pés de cadeiras. Seus olhos eram como enormes bolas de cristal com um risco negro. Daquele traço só se podia imaginar os tipos de criaturas que vivem do outro lado. Felizmente, os olhos estavam quase sempre ocultos sob as pesadas pálpebras.
A casa em que viviam o gato e as senhoras era cercada por arame farpado. Atrás, havia um quintal onde o capim crescia selvagem, como vibrissas da terra, e onde antigas e novas bolas de futebol jaziam abandonados (embora nem sempre esquecidas). As senhoras ás vezes iam até lá para catar lagartos, ratos ou gambás, que eram o alimento do gato.
As velhas eram silenciosas e, fora o tempo que gastavam cuidando do gato, sedentárias. Vestiam casacos esquecidos no metrô, os que foram recolhidos e guardados nas gavetas daquela casa (não foram elas quem os recolheu, mas a pessoa que morava ali antes). Todas possuíam olhos claros, umas mais que outras. Até Luma, que era toda escura; dos dedos dos pés negros aos pelos carbonizados, só lhe escapavam os olhos amarelos. Faísca, a ruiva, era uma velha de olhos enferrujados e cabelos e sobrancelhas incandescentes, mas de um fogo pálido. Princesa era aquela que passeava como um vulto branco: tinha a pele e a cabeça luminosas, os olhos azuis. Anna possuía cabelos cinza-azulados e olhos verde-opacos. Níquel tinha o cabelo dividido em mechas escuras, claras e médias, todas em algum nível de cinza, um pouco mais metálico que o de Anna.
O gato raramente se mexia. Ás vezes trocava de posição, o que poderia levar horas, já que não era somente um gato grande, mas um gato gordo e desajeitado. Houve uma época em que ele mantinha a cabeça sempre virada para a TV. Agora o aparelho não é mais ligado.
A casa era cheia de coisas que não faziam sentido para as senhoras. Havia xícaras, chaleiras, fogão, um forro de crochê sobre o aparador, o aparador, porta-retratos, imagens de santos, livros e muitos óculos esquecidos em vários cômodos. Cada objeto daqueles tinha uma história que elas ignoravam. Não ligavam para a marca invisível de lábios na caneca com pintas de dálmata, onde alguém bebeu café todos os dias, por seis anos. Se a foto na moldura de plástico contava a história de uma neta que perdeu o dente na piscina, não havia interesse. O que realmente as interessavam eram as torneiras e almofadas. Tinham o prazer da água-corrente e dos lugares confortáveis. E só.
Houve um dia em que uns homens arrombaram a porta da frente, depois de gastar a música da campainha. O primeiro deles entrou furtivo e encontrou as senhoras dormindo em poltronas, no sofá e nas costas do gato. Ele não deve ter percebido a respiração suave do grande felino, pode mesmo tê-lo confundido com uma pilha monstruosa de edredons – estava muito ocupado em ficar enjoado com o fedor dali para prestar atenção.
Luma era a única acordada. Aproximou-se do homem, que a olhou de cima para baixo. Ele estava realmente envergonhado por ter destruído a porta, mas não se desculpou. Ao invés disso, falou:
– Onde está Efigênia? Ela ainda mora aqui?
Luma respondeu que não, bisbilhotando as pessoas atrás daquele homem, que também pareciam embaraçadas por quebrar a porta de cinco velhinhas adormecidas. Foi assim que ninguém deu um passo à frente a ponto de poder ver o gato gigante na sala escura.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O jardim animado
Short StoryNove contos sobre as possibilidades da ficção e da magia. Cat Lady - Cinco velhinhas, um gato gigante e uma visitante que chega pelo vaso chinês no hall. O fim. - É o fim do mundo e sobraram a garota, o garoto e buldogue. A morte de Afrodite - Às...