Melancolia Londrina

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Poderia ser mais um dia pacato e banal na cidade de Londres.

Os arranha-céus emoldurando a vista do mais novo escritório e centro de pesquisas da empresa, as buzinas dos carros que circulavam pela rua onde este era localizado, a breve brisa fria daquela manhã hibernal que tentava incessantemente entrar pela minúscula fresta da enorme janela de vidro límpida e reluzente, e as intermináveis formiguinhas andando rápido, cheias de disposição matinal correndo com suas vidas apressadas e desinteressantes... Tudo isso, a barulheira, a vista impecável e as pessoas andando, tudo era monótono sobre os olhos verde-carvalho da recém-promovida Charlotte, que não parecia nem um pouco animada por estar presa entre quatro paredes.

Mas não era um dia comum, não mesmo. Era uma segunda-feira rigorosa daquele que seria o melhor inverno até então da vida daquela jovem.

A segunda-feira que Charlotte Acker seria mais uma vez promovida, e para longe.

Se existem coisas na lista de certezas de Charlie começaríamos por: o incrível talento de ler dois livros de romance por semana, isto é, se podemos isso chamar de talento. A estranha capacidade de vestir camisas de manga longa até em dias de sol escaldante (nota: ela gostava de beige, uma cor terrivelmente morta) e, para finalizar, ser campeã e beber mais de um litro de café por dia, possuindo capacidade de manter os dentes brancos. Porém, se formos relatar a lista de "dúvidas", a palavra "relacionamento sério" estaria no topo dela.

A garota não estava preparada para passar mais de três meses trancafiada em uma sala estudando as mais variadas espécies de borboletas e afins sem nem sequer poder tocar na fina camada que seriam as asas. Londres oferecia uma rica diversidade de empresas que se interessavam na área biológica da vida, mas ao mesmo tempo privavam seus funcionários de viver intensamente esse prazer natural. Não se podia sair no inverno e procurar um bosque ou jardim para observar os magníficos insetos voadores, pois: 1) Não existam bosques, e os jardins possivelmente estavam congelados com a mínima de quatro graus célsius. 2) Fumaça, carros e o consumismo tiravam toda a alegria de uma observação perfeita. 3) Onde em Londres pode-se achar um paraíso natural sem interferência humana?

Isso deixava a jovem irritada, profundamente irritada. Formou-se em Oxford e seguiu cegamente os conselhos de sua mãe que a diziam para procurar um trabalho bom naquela cidade, pelo menos seria bem remunerada.

Valeria a pena falar de sua mãe agora?

Charlotte não era nascida na Inglaterra, mas sim era uma legítima alemã. A descendência era ainda mais forte por parte de seu pai, Francesco. Já sua mãe, Amélia, não era completamente alemã, havia nascido lá, mas cresceu na Rússia. A jovem gostava de observar os insetos e cuidar das flores no jardim da mãe em Moscou, ao mesmo tempo em que seu pai servia o exército alemão.

Charlie odiava a ideia que vê-lo tanto tempo longe, trabalhando em algo que poderia toma-lo a vida. Foram inúmeros momentos de desespero que passou com a mãe, seja um acidente ou algum boato que espalhavam sobre ele. A comunicação era cortada, então, a garota e a mãe, nunca saberiam se ele iria realmente voltar para casa.

Em um dia primaveril e ameno, ao cuidar de seu jardim, Amélia mexia alegre em suas flores, cortando algumas para fazer uma coroa de flores para sua filha ainda pequena. E, inesperadamente, uma cobra, que se camuflava nas folhas, pulou e atacou-a. A mãe não queria que a filha se machucasse, então pediu para que se afastasse e trancasse a casa, evitando que este animal entrasse nesta.

A briga foi demorada e em vão, a cobra acabou picando a mão da mulher, que segundos depois começou a sentir uma dor insuportável, percebendo uma substância nova correndo em suas veias. A expressão que esta fazia, fez Charlotte correr até a casa do vizinho e pedir ajuda, que por sorte sabia lhe dar com situações assim. Mas, sem sorte, mesmo com circunstância a favor, a mão teve que ser penalizada.

Este foi um dos principais motivos que fez a mocinha odiar seu pai, ele não estava lá para proteger a esposa, e quando retornasse, encontraria uma mulher incapacitada de mexer no jardim, sentada em uma cadeira de balanço traumatizada com o membro decapitado, em faixas cobertas de sangue. Não gostava de ver a mãe naquele estado, então, cuidava todos os dias do jardim, fazia coroas de flores e colocava inúmeros vasinhos de rosas pela casa para alegra-la.

Aos poucos, Amélia foi se recuperando, até o inesperado dia em que Francesco abriu o pequeno portãozinho e, desesperado ao ver sua mulher com uma mão a menos, largou suas coisas na varanda e correu para perguntar o que havia acontecido. Ela não quis dizer, até que Charlie contou a história, e nomeou o vizinho como o grande herói, ressaltando que o real deveria ser ele, que estava longe demais para ouvir os gritos da esposa.

Isso o destruiu por um tempo, pelos longos quatro meses que pode ficar em casa, para celebrar as datas festivas. Com cicatrizes novas, o pré-senhor sentou no sofá da sala e encarou a televisão desligada por horas. E isso se tornou rotina, repetiu a ação pelos quatro meses, sem saber como poderia se remedir a família que abandonara por causa do trabalho.

Mesmo odiando lembrar-se de histórias como essa, a jovem às vezes se alegrava ao relembrar sua vida em Moscou. Não tinha amigos, nem uma família muito unida, mas houveram inúmeros momentos divertidos com os insetos do jardim, qual a cada dia descobria um novo. Sua paixão por borboletas surgia e ressurgia a cada primavera, quando um grande grupo delas se reunia em seu jardim para rodear as flores. Cada uma tinha uma cor diferente, desenhos diferentes e tamanhos. Umas eram chamativas, e outras bem sem graça, e era com essas sem vida que a moça se identificava. Corria por horas atrás delas no espaço gramando para observa-las mais de perto, mesmo não sendo discreta, às vezes conseguia tocar em uma e outra.

Hoje, a mulher Acker deseja sair da melancolia da cinza Londres e ir para novos ares, buscando observar aquelas que são inexistentes no meio da fumaça negra dos carros. Tinha acabado de ser promovida na empresa que trabalhava, porém, não sabia que sua promoção constava em ficar sentada em uma cadeira e observar características escritas e fotos de péssima resolução de suas companheiras de asas. Ela já sabia de tudo aquilo, queria colher mais informações e sentir a emoção por si mesma, e não ler relatos de alguém que está fazendo o seu trabalho.

- Patético - murmurou ao abrir o livro velho de uma pilha que deveria ler.

Era tudo muito melancólico, tudo com extrema simplicidade, tão ultrapassado e sem diversão, ríspido. A jovem encostou-se à sua mesa, pegou sua xícara de café e tomou um gole, começou abrir os outros livros, desistiu. Pegou seu celular não muito moderno para ver as horas, era quase seis, prestes a anoitecer.

"Como vou explicar ao Joseph que não estou feliz com isso?"

Colocou os livros de qualquer jeito na mochila, deixou os lápis e a mesa arrumada, empurrou a cadeira e deu mais uma olhada na enorme janela. As formiguinhas agora faziam o caminho reverso, voltavam de seu trajeto. Aquilo era tão desinteressante, mas ao mesmo tempo tão mais interessante do que ficar parada lendo páginas e páginas de coisas óbvias.

Se pudesse definir a cidade de Londres e seu atual estágio de vida em apenas uma palavra, esta seria "melancólico".

- Melancolia londrina - disse baixinho ao passar pela porta, dando sua última olhada na janela, sabendo que em poucos minutos juntar-se-ia as formiguinhas que voltavam de mais um dia ignóbil.

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