A Bolha

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Lícia Guedes

Ainda lembro cada detalhe daquele dia. Ah! Nunca vou esquecer! Lembro-me da angústia do começo... sim... tão nítido... Quando me apercebi, era só escuridão.

Naquele instante, eu não via nada ao meu redor, era terrível. Eu não conseguia entender o que estava acontecendo, pois ainda estava muito atordoado. A minha consciência parecia ter se desprendido de mim durante muito tempo e agora que voltava aos pouquinhos, até meu nome era uma lembrança vaga.

Durante algum tempo eu fiquei ali, no escuro, tentando lembrar de alguma coisa, mas minha cabeça parecia estar processando em câmera lenta, era uma sensação bem incômoda. Depois do que me pareceu uma eternidade, meus neurônios apresentaram respostas ao meu esforço e só então notei algo que deveria ser óbvio: eu estava de olhos fechados.

Era definitivamente estranho não ter notado isso antes, mas deixei para me questionar sobre o caso mais tarde e então, abri os olhos. Ao fazê-lo, percebi imediatamente o quanto minhas pálpebras estavam pesadas e enrijecidas e perguntei-me por quanto tempo elas haviam ficado cerradas daquela forma. Entretanto, o que minha vista embaçada captou chamou bem mais a minha atenção.

Eu estava dentro de uma bolha! Dá para acreditar? Fiquei sem reação ao ver aquela estrutura esférica ao meu redor, bloqueando minha liberdade. Tive vontade de levantar e esmurrá-la até conseguir sair, mas meu corpo estava muito mais pesado que minhas pálpebras e mal consegui levantar o braço. O que mais eu podia fazer naquela situação? Fiquei ali movendo os olhos como se fosse uma estátua viva até que as manchas embaçadas ao redor começassem a tomar forma.

Então eu vi. À minha frente estavam centenas de outras bolhas enfileiradas, com centenas de pessoas dentro. Fiquei realmente assustado com aquilo, mas não havia muito o que fazer, tentei chamar a moça que estava a frente de mim, mas minha voz não quis sair. Além disso, ela parecia dormir profundamente, como todos os outros.

Pouco depois, enquanto eu lutava com minhas cordas vocais adormecidas, tomei um grande susto ao sentir a bolha se mexer. Fiquei atônito. Alguma coisa embaixo de nós, uma esteira talvez, estava conduzindo toda a fila de bolhas para o desconhecido e eu não tinha vontade alguma de conhecê-lo. Eu queria sair daquele lugar, redescobrir a minha identidade, fazer o meu corpo imóvel tornar-se útil de alguma forma! Mas, minhas vontades não tiveram muito efeito.

Após segundos angustiantes de inutilidade imóvel, o desconhecido mostrou-se para mim e eu avistei a enorme fenda no chão, para a qual todas as bolhas estavam sendo conduzidas. Ah! Mas que terríveis instantes de desconsolo! Percebi imediatamente que ser jogado naquela fenda significaria o fim de uma vida desconhecida, esquecida, que acordara só para presenciar seus últimos instantes!

Tensão. Foram os momentos que se seguiram. Cada bolha jogada fazia a fenda aproximar-se de mim. Eu tentava usar o peso do meu corpo para tirar minha bolha da fila, mas foi em vão. Logo, lá estava eu, cara a cara com a negra imensidão. Entretanto, minha vontade de viver pareceu preencher cada célula do meu corpo, fazendo meus braços mexerem, minhas pernas se contraírem e minhas cordas vocais acordarem com um último grito:

— SOCOOOOOORRO!!!

Eu sabia que estava gritando para o nada, porém, quando me dei conta, estava parado no ar e a bolha ao meu redor se fora.

— Ei! Tá tudo bem aí?!

Eu ouvi uma voz dizer do alto. Só então percebi que minha cintura estava envolta por uma corda e esta estava sendo puxada para cima.

Quando cheguei ao mais alto possível, quase ceguei com a luz do sol e só distingui a garota de cabelos longos que havia me salvado quando já estava em terra firme.

— Nossa, como você é sortudo! Cair lá embaixo não ia ser nada bom, sabia? Ainda bem que o papai me mandou na hora certa!

— Hmm, muito obrigado. — disse eu, enquanto levantava de minha posição quadrúpede.

— Ah, não agradeça a mim! Foi o papai quem mandou eu te buscar! Falando nisso, vamos andando que ele tá esperando a gente!

— E-espere! — eu disse, enquanto começávamos a andar — Você não pode me dizer o que aconteceu comigo? Não tem ideia de quem me prendeu lá embaixo?!

— Hein? Do que está falando?! Você escolheu ficar lá, não tá lembrado?

— O quê?!

— É! Aposto como um monte de gente disse pra você não fazer isso, mas a decisão foi sua. Tente se lembrar!

Então, de súbito, as lembranças me invadiram e eu lembrei: o dia chuvoso em que eu perdi minha família, o homem de paletó dotado de um sorriso desconfortável... sua proposta irrecusável de não sentir mais a dor da perda... o lugar de que eu não havia gostado, e a decisão de dormir eternamente. A minha fuga. Fuga da dor. Como? Como pude desistir de viver daquela forma? A dor de arrependimento era bem pior que a dor da perda.

— Olha! Lá está ele! Papai!!!

Eu levantei os olhos, mas não vi nada, então disse:

— N-não tem nada lá!

— Ei! Você só tá vivo por causa dele, sabia? Ele tá bem ali!

— Mas...

E ela saiu feliz a falar com o pai invisível.

— Ah, papai! A corda que você me deu atravessou e destruiu a bolha dele! Exatamente como você disse!!! Foi tão incrível! Ah! Olha ele aí!

Eu a ouvi dizer quando já estava perto o suficiente. Era estranho vê-la falar com o vento, mas não tardou para que eu entendesse o motivo. Quando me aproximei o suficiente, ouvi uma voz dizer, assustando-me:

— Caio, você quer me ver?

Como ele sabia meu nome? Fiquei confuso quanto a isso, mas algo dentro de mim me fez responder:

— Eu... sim.

— Então, abra os olhos.

A resposta de meu corpo foi imediata. Como que num fôlego meus olhos enxergaram o rosto mais amável que já tinham visto e eu compreendi. Compreendi que não podia vê-lo antes porque há muito tempo eu não acreditava numa possibilidade de resgate. Porém, ele estava ali o tempo todo, o responsável pela minha vida resgatada, o responsável pela minha abertura de olhos! Então, em meio ao meu momento perceptivo, o responsável abriu-se num sorriso e disse:

— Bem vindo à família, Caio!

Aquelas palavras surtiram um efeito inesperado em mim! Meu doloroso arrependimento converteu-se em esperança. Sim! A esperança de viver uma nova vida, uma vida de olhos abertos! Diante disso, meu rosto abriu-se num sorriso e, sem perceber, voltei o olhar para a garota de cabelos longos. Ela sorria também. E, ao me perceber, disse:

— Bem vindo, irmãozinho!

Uma lágrima silenciosa brotou no canto de meu olho. Diante disso, meu novo pai envolveu-me num abraço aconchegante. Depois, passou o braço no meu ombro e no de minha nova irmã e começou a andar, conduzindo-nos e falando, docemente:

— Vamos, meus filhos. Porque ainda há muitos outros que podem ser salvos!




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⏰ Última atualização: Dec 20, 2015 ⏰

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