Eu estava numa casa desconhecida, não fazia ideia de como havia chegado ali, nem qualquer outra informação sobre tal.
Olhei em volta, buscando qualquer meio de esclarecimento. Situava-me numa sala de estar bem aconchegante, os móveis eram em tons de branco, as paredes - igualmente brancas - eram lisas e sem quadros ou fotografias que indicasse algo sobre os moradores. O piso era de madeira, o que estranhei, os brasileiros adoravam cerâmica, não madeira.
Uma janela de vidro com laterais de madeira chamou-me atenção. As cortinas eram negras, pude perceber que a janela estava entreaberta, pelo modo como as cortinas se movimentavam timidamente.
Aproximei-me dela, relutante.
Toquei na borda da cortina aveludada e a afastei. Prendi o ar, segundos se foram e eu continuei me recusando em libertar o ar dos pulmões. Quando o fiz, quase desmoronei no ato. Não me permiti acreditar no que via. Meu cérebro se recusava em aceitar aquela imagem, aquela cena tão incomum... Tão irreal.
Desejei correr para junto, fazer parte da cena, e ao mesmo tempo, quis correr para longe, para um lugar frio, escuro e tristonho. E chorar, por saber que sonhei, por ser tão estúpida e patética.
Eles continuavam lá, sorridentes, como se tivessem posse de toda felicidade do Universo. Soltei um suspiro seguido de um pequeno sorriso. Vi meu reflexo no vidro e repudiando-o, tornei a ficar séria. Entretanto, via curiosidade na minha face. Desviei o olhar e vislumbrei a paisagem.
A área em torno era imensa, havia árvores altíssimas no fundo, verdes e dançantes. O gramado era incrivelmente verde e havia flores em abundância, situadas em canteiros destintos por todo o jardim. Havia cores, movimentos e indiscutivelmente, o espírito de felicidade e harmonia reinava naquele lugar. No centro estava o casal, semelhantes a dois adolescentes. Ele sentado na grama e ela com a cabeça sobre seu colo. Ele a acariciava afetuosamente. Aquilo era inédito.
Duas esferas incrivelmente azuis se encontraram com meus olhos verdes.
O que dá quando se mistura verde e azul?
O homem acenou para mim, pôs as mãos sobre o cabelo loiro arrumando-o e disse algo para a ruiva em seu colo. Embora eu não tivesse ouvido o que ele disse, eu pude ouvir a alta e gostosa risada dela. Aquilo era raro, raríssimo! Sorri novamente em deleite. E se fosse real? Se as coisas tivessem se acertado e o amor estava mais forte que nunca? Eu poderia voltar para casa e viver normalmente com meus pais?
Minha mãe havia se levantado e estava sorrindo para mim.
" Venha aqui, querida! " quê? Pelos deuses! Ela estava me chamando?
" Venha aproveitar o Sol conosco." papai sorriu encorajando-me, eu sorri de volta, meio embaraçada. Será?Coloquei minha mão sobre o vidro e minha respiração o embasou. Baixei minha cabeça por um instante, ponderando a situação.
Quando tornei a olhar, vi que tudo havia mudado. Estava nublado, as árvores estavam secas, não havia flores muito menos a grama verdinha. Tudo estava seco e triste. Meus pais não estavam mais lá fora. Eu ouvi lamentos abafados vindo de cima. Corri para as escadas, pulando dois lances de vez. Quando cheguei ao último degrau, disparei para o único quarto que estava com a porta aberta, no fim do corredor. Meu pulso estava acelerado e meus dedos formigavam. Eu estava com medo. Receando o que haveria de encontrar em poucos segundos.
Quando cruzei a porta, presenciei exatamente o que temia. Mamãe estava sentada ao lado da cama, toda encolhida com uma mão em volta das pernas e a outra no nariz, de onde minava sangue. Ela estava com um arranhão na bochecha esquerda e os olhos marejados. Mirava o nada.
Doía absurdamente vê-la naquele estado. O agressor, estava olhando pela janela. Como se aquilo fosse algo banal do cotidiano.
"Sara..." ouvi.
Alguém esta me chamando, mas não era meus pais. A voz é conhecida e eu fico cada vez mais curiosa. Sentia que precisava entregar-me ao chamado, porém desejava ficar para ver a cena mudar novamente. Para vê-los felizes.
Tarde demais...
- SARAAAA!!! - desperto subitamente do meu sonho e murmuro maldições inaudíveis e de significado apto apenas para minha compreensão. Já que divido a casa com meu irmão que é um leigo literário e minha cunhada que só pra se ter ideia; ela lê como uma criança na alfabetização, soletrando cada palavrinha. PA-LA-VRI-NHA!
- Aula em quinze minutos, vai perder o último dia? - Edgar pergunta aos berros murrando minha porta.
- Se tu se calar, wendigo... OK! - digo, lutando pra me livrar dos lençóis que são como correntes macias e encantadas, que tentem a me prender da forma mais confortável e irresistível possível. Que sussurram uma cantiga de ninar quase imperceptível, mas tão poderosa que julgo ser mágica. Pois só de pensar, já estou querendo e esquecendo os meus deveres. Era mesmo o quê?
- SARA!! - me assusto com o berro inesperado. - Sai dessa cama, dez minutos agora... Vai perder a carona.
- Quê? Carona? - pergunto, mas o silêncio vem em resposta. - Idiota! - murmuro por fim, baixinho.
Eu sempre ia para a escola a pé. Meu irmão nunca - em todos esses três anos que vivo no Brasil - nunca me levou ao colégio. Talvez ele pense que já que estou concluindo o ensino médio queira voltar para Berlin. Que finalmente o deixe à sós com sua bela esposa. E assim queira fazer-me uma gentileza. Nem fodendo que volto a morar com meus pais.
Fecho os olhos e a visão do sonho me revira o estômago. Fazia três anos que não via mais cenas como aquela ao vivo. Somente tinha pesadelos, ou sonhos felizes que findavam horrendos. Porém, há três anos que não vejo minha mãe apanhar a sangue frio daquele que jurou amá-la e respeitá-la. Até que emfim a velhice venha e a morte bata em sua porta trazendo o convite para o descanso da alma.
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Sara: Entre Eu E Você
RomanceSara Feuer, uma alemã descendente irlandesa e abrasileirada. Vive em meio aos três países. Mesmo sendo uma típica garota irlandesa, com olhos esmeraldeados e cabelos flamejantes ,ela possui sangue alemão herdado do seu pai, um homem linha dura mas...