Morte é a ausência definitiva. Tomei consciência desse fato aos quatro
anos de idade, dois meses depois de ter ficado órfão. Estava sentado à mesa do
café-da-manhã, encolhido por causa do frio; minha avó espanhola, de vestido
preto, vigiava o leite no fogão, de costas para mim.
Naquela noite, tinha sonhado que passeava de mãos dadas com minha
mãe por uma alameda de ciprestes que havia na entrada da chácara de meus
tios, na rua Voluntários da Pátria, em Santana, um bairro de São Paulo.
- Vó, nunca mais vou ver minha mãe?
Sem demonstrar a solicitude habitual com que respondia minhas
perguntas, ela permaneceu calada, cabisbaixa na direção da leiteira.
Vinte anos mais tarde, na faculdade, descobri que tratar de doentes graves
era o que mais me interessava na medicina. Por essa razão, passei os últimos
trinta anos envolvido com pessoas portadoras de câncer ou de AIDS, em
convívio que moldou minha forma de pensar e de entender a existência
humana.
No começo da carreira imaginei que, se ficasse atento às reações dos que
vivem seus momentos finais, compreenderia melhor o "sentido da vida". No
mínimo aprenderia a enfrentar meus últimos dias sem pânico, se porventura
me fosse concedido o privilégio de pressenti-los. Com o tempo percebi a
ingenuidade de tal expectativa: supor que, por imitação ou aprendizado, seja
possível encarar com serenidade a contradição entre a vida e minha morte é
pretensão descabida. Não me refiro à morte de estranhos nem à de entes
queridos, evidência que só nos deixa a alternativa da resignação, mas à minha
morte, evento único, definitivo.
No exercício da profissão aprendi que a reação individual diante da
possibilidade concreta da morte é complexa, contraditória e imprevisível;
impossível compartilhá-la em sua plenitude.
Há muitos anos penso que, se conseguisse construir um caleidoscópio com
as histórias dos doentes que conheci na prática da cancerologia, com as reações
de seus familiares e amigos próximos, talvez pudesse transformá-lo num livro.
Se até hoje me faltou coragem para tanto, foi por me considerar imaturo para a
natureza da empreitada. Será possível na juventude compreender o que sente
um senhor de oitenta anos ao perceber que não sairá vivo do hospital? O sofrimento de uma mulher ao perder o companheiro de quarenta anos de
convivência harmoniosa pode ser imaginado por alguém de trinta?
Se me dispus a escrever agora, aos sessenta anos, foi menos por
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Por Um Fio - Drauzio Varella
Ngẫu nhiênEm Por um fio, está de volta o narrador sensível e cuidadoso de Estação Carandiru, que, contando histórias reais, reflete sobre o impacto da perspectiva da morte no comportamento de pacientes e seus familiares. Drauzio Varella especializou-se em onc...