One Shot

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Daniel puxou a cadeira da cozinha e sentou com toda a calma que conseguia extrair. Tinha acabado de deixar Mila na casa do casal Almeida, pra festinha de aniversário que fora convidada, e pelo seu estado de espírito, era o mais próximo da sensação de proteção que ele queria e era capaz de transmitir a ela. Pegou as muletas encostadas na beirada de vidro da mesa e mancou até o sofá da sala, sem antes se servir de um copo americano do seu café forte e amargo, como costumava fazer. Olhou para os livros sob a televisão LCD, vendo as oito marcações próximas do último terço de cada um, se perguntando sombriamente porque nunca terminava nada que começava. Aquele horário não era muito bom para a TV aberta. Apesar do capricho tecnológico do seu aparelho de transmissão, nunca se convidara a gastar além do orçamento assinando canais à cabo. Passou pelos programas de entrevista de mulheres da RedeTV, dos filmes baratos e fielmente reprisados da Globo, pelos programas religiosos de muitos canais, e caiu no tabloide digital da Band. Uma pontada repentina de dor passou por sua perna como um pulso elétrico, e apertou os olhos, fazendo uma careta de esgar. "Puta que pariu", pensou, olhando para o gesso envolvendo sua perna esquerda. Ao menos era a esquerda, e não ficaria para sempre inutilizado nas peladas de fim de ano da empresa.

Mesmo assim não conseguia afastar o pensamento de pesar, ao lembrar de Júlia. Tiveram grandes e memoráveis momentos. Se lembrava de seu pedido de namoro idiota, com a ideia de colocar o anel dentro de sua coxinha favorita na lanchonete que se conheceram. Ele deixou uma lado do salgado tão destruído que teve que virar para baixo no prato e forrar com guardanapos que ficaram empapados com o catupiry descoberto. Ela riu muito, e depois chorou, beijando-o e aceitando-o para sempre. Após aquilo, foram três anos de muita paixão, sexo e loucuras. Fugas dos pais dela no shopping, para assistirem filmes de romance erótico no cinema, e duas horas depois ela surgir com a cara mais lavada do mundo dizendo que tinha encontrado amigas e ficado conversando na livraria. Ou quando mentiram, simultaneamente a suas famílias, alegando viajar a um retiro de igreja, para viajar de carona com amigos até a praia, se embebedarem e se drogarem até a virada do feriado prolongado. Foram muitas aventuras até chegar Camila.

A longa marcha de notícias horríveis eram ditadas pelo âncora, que as contava como uma história numa roda de bar, com velhos funcionários públicos bêbados da década de setenta. Soltava seu vômito intelectual, com os discursos sensacionalistas e moralistas de ódio, como se matar cada cometedor de crimes estivesse de fato bonificando o ideal de mundo melhor da sociedade. Por um momento, sentiu um cheiro estranho. Uma brisa que jurou ter surgido da janela aberta da sala, mas não percebeu a cortina se mover um centímetro sequer. Um cheiro aterradoramente familiar.

Fechou os olhos e encostou a cabeça no encosto acolchoado do sofá. A dor na perna não parava, mas vez ou outra diminuía, como se estivesse num banco Viking daqueles parques ambulantes de diversão. Ele começava lento, e ia deslizando da base do quadril até passar pela coxa, depois vinha de baixo, da sola do pé até a canela, e se encontrava no joelho, como se toda a vez que o barco devesse tirar a sensação maligna de frio na barriga, ele se chocasse com um iceberg de ossos quebrados como no Titanic. A dor era de vaivém, assim como as memórias de Júlia. Após o nascimento da pequena Mila, seu amor tivera depressão pós-parto. Um daqueles monstruosos eventos psicológicos que sempre achamos o mais distante possível de pessoas aparentemente autossuficientes. Ela chorava dia e noite e evitava a todo custo olhar para aquele pacotinho de carne que havia parido, como ela chamava. Nunca amamentou, e foram meses de desgaste psicológico e financeiro para bancar o leite artificial da filha. Júlia não conseguia mais trabalhar, nem estudar, nem mesmo ler, que sempre fora uma de suas favoritas e mais essenciais atividades. Daniel sofria de angústia, e ao mesmo tempo, sabia que não podia transparecer uma gota sequer de seu sentimento interno para evitar transtornar ainda mais sua família já frágil. Camila foi crescendo forte e inteligente, assim como o desgosto de sua mãe, que de depressão, passou a demonstrar pequenos aspectos de uma loucura tímida, mas dolorosamente visível. Às vezes conversas vazias sozinha no banheiro, em outras ocasiões detalhes despretensiosos, como colocar mais dois lugares na mesa, ou deixar em uma canal chiando na televisão. Deste início, a pior lembrança que ele tinha era dela lendo, dia após dia, com a mesma atenção e expressão que demonstrava no passado, um caderno inteiramente em branco. Ele chegou a vê-la rindo e chorando com as palavras imaginárias transcritas por sua mente prematuramente senil.

Ferro em brasaOnde histórias criam vida. Descubra agora