O menino debruçou-se sobre a fonte, quase congelada, recolhendo com as suas mãozinhas alguma da água, completamente suja, e bebeu sofregamente como se nunca tivesse provado algo tão saboroso.
Estava tanto vento que o seu cabelo negro esvoaçava ferozmente chicoteando-lhe, por vezes, o rosto e deixando-o vermelho. Ele mal conseguia manter os seus belos olhos castanhos abertos para ver por onde ia. Não que visse grande coisa, dado que nevava com uma intensidade tal que mal se podia respirar sem ter neve agarrada à ponta do nariz. As poucas roupas do menino não o protegiam de tanto frio e já tinha as pontas dos dedos e das orelhas a ficar azuis.
Quando desceu da fonte, soprou para as mãos em redor da boca e do nariz para se tentar aquecer um pouco. Mas assim que parou de soprar, voltou a sentir o frio glacial e, parecia-lhe, de forma ainda mais cruel. Todo o seu corpo estremeceu.
Deu uns passinhos pela rua e chegou a uma casa onde se via o brilho da lareira a passar pela janela. Timidamente, espreitou lá para dentro em bicos dos pés. A lareira crepitava e ele quase podia sentir o seu calor. A mesa estava posta. Os pratos, copos e talheres e uma enorme panela de sopa. A pequena barriga do menino fez um barulho sonoro, como se dissesse que queria comida.
A sua família sempre fora pobre mas tinham tido sempre um prato de sopa para comer. No entanto, naquele ano os pais tinham viajado em busca de trabalho e tinham-no deixado com a avó. A avó era muito velha e não tinham passado dois dias desde que os pais partiram quando ela morreu. Para não ser levado para um orfanato, o menino vira-se obrigado a fugir. Encontrava-se agora sem comer e sem casa há dois dias e nem o facto de ser véspera de natal o consolava.
Desde que ficara só, descobrira como as pessoas eram cruéis. O gelo que se formava nos lagos, por mais frio e espesso que fosse, acabava por derreter quando chegava o calor da Primavera. No entanto, no coração das pessoas o gelo nunca chegava a derreter. Pedira um pedaço de pão a pais, mães e avós. Pedira uma manta para se aquecer a vendedores, feirantes e costureiras. Não lhe deram nem uma migalha, nem um trapo.
Sentou-se com as costas contra a parede e começou a chorar. Chorar não adiantava, mas para uma criança de apenas 6 anos não havia mais que fazer. O desespero que sentiu nesse momento não tem como ser explicado. Só as lágrimas cristalinas do menino diziam tudo sobre dor e sofrimento.
- Pequena criança, o que fazes na rua nesta noite tão fria? – Uma mulher alta de rosto bondoso e sobretudo comprido aproximou-se dele.
- Não tenho para onde ir...
- Tive de ir à loja buscar um peru. Afinal, não há natal sem um belo peru!
À menção do peru, o menino olhou para as mãos da senhora e viu um saco enorme onde, sem dúvida, se encontrava um suculento peru de natal. Quase lhe escorria a saliva para fora da boca de tanta fome que tinha.
- Queres entrar na minha casa? A lareira está acesa e a mesa está posta apenas para mim e para o meu marido, mas há sempre lugar para mais um.
Comum sorriso que iluminaria o dia mais negro, o menino levantou-se, estendeu a mãozinha gelada e deu um beijo no rosto da senhora. E naquele frio tão intenso, o beijo da criança aqueceu a mulher como se o fogo da lareira se transmitisse para o seu corpo. Não há chama mais intensa do que a do fogo de um coração cheio de amor.
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O Gelo e o Fogo
Short Storyall rights reserved / todos os direitos reservados à Jaqueline Miguel Obra devidamente registada no Safe Creative Copyright Registry sob o código 1605037410441 em Maio de 2016. -------------------------------------------------------- Esta é a histó...