Ruth

686 9 3
                                    

- Irá
Ouço isso, primeiro, em meu sonho, de um jeito confuso e vago, como um som embaixo d'agua. Demoro um instante para perceber que alguém está dizendo meu nome. Mas isso não é possível.
- Você tem que acordar, Ira.
Abro os olhos com dificuldade. Vejo Ruth, minha esposa, no banco do meu lado.
- Estou acordado - digo, com a cabeça ainda no volante.
Sem meus óculos, perdidos no acidente, a imagem dela não tem definição, como a de um fantasma.
- Você saiu da estrada.
Pisco.
- Um maluco me fechou. Bati em um pedaço de gelo. Sem meus reflexos de gato, teria sido pior.
- Você saiu da estrada porque está cego como um morcego e velho demais para dirigir. Quantas vezes eu lhe disse que você é um perigo atrás do volante?
- Você nunca me disse isso.
- Pois deveria. Você nem viu a curva. - Ela faz uma pausa. - está sangrando.
Ergo a cabeça e limpo a testa com a mão boa, que fica vermelha. Há sangue no volante e no painel e manchas vermelhas por toda parte. Pergunto-me quanto sangue perdi.
- Eu sei
- Você quebrou o braço. E a clavícula também. E há algo errado com seu ombro.
- Eu sei - repito. Quando pisco, Ruth some e reaparece.
- Você precisa ir para o hospital.
- Isso é óbvio.
- Estou preocupada com você.
Respiro fundo antes de responder.
- Também estou preocupado comigo - digo por fim.
Minha esposa não está realmente no carro. Percebo isso. Ela morreu há nove anos - o dia em que achei que minha vida tinha acabado. Eu a chamei da sala de estar e, como ela não respondeu, me levantei da cadeira. Naquele tempo eu caminhava sem andador, mas muito devagar, e quando cheguei ao quarto,  a vi no chão, perto da cama, deitada sobre o lado direito do corpo. Chamei uma ambulância e me ajoelhei ao seu lado. Virei-a de barriga para cima e pressionei os dedos em seu pescoço para sentir a pulsação. Não detectei nada. Fiz respiração boca a boca, como tinha visto na televisão. Seu peito suibia e descia enquanto eu respirava e soprei até minha visão começar a ficar embaçada, mas ela não reagiu. Beijei seus lábios e seu rosto e a segurei perto de mim até a ambulância chegar. Ruth, minha esposa havia mais de 55 anos, morrera, e num piscar de olhos tudo que eu tinha amado também se fora.
- Porque você está aqui? - pergunto-lhe.
- Que tipo de pergunta é essa? Estou aqui por sua causa.
É claro.
- Por quanto tempo eu dormi?
- Não sei - responde ela. - Mas está escuro. Acho que você está com frio.
- Sempre estou com frio.
- É - concordo. - Não tanto.
- Porque estava dirigindo nessa estrada? Aonde ia?
  Penso em tentar me mover, mas a lembrança da pontada me faz parar.
- Você sabe.
- Sim
- Black Mountain. Onde passamos a lua de mel.
- Queria ir lá uma última vez. Amanhã é nosso aniversário.
Ela demora um instante para responder:
- Acho que você está ficando senil. Nós nos casamos em Agosto, não em fevereiro.
- Não esse aniversário - digo. Não conto a ela que, de acordo com o médico não viverei até agosto. - O outro.
- Do que você está falando? Não há nenhum outro aniversário. Só um.
- Do dia em que minha vida mudou para sempre - respondo. - O dia em que conheci você.
  Por um momento Ruth não dizia nada. Sabe que estou sendo sincero, mas ao contrário de mim, não é de dizer essas coisas. Ruth me amava
apaixonadamente, e eu sentia isso em suas expressões, em seu toque, no terno roçar de seus lábios. E quando mais precisei, também na escrita.
- Foi no dia 6 de fevereiro de 1939 - digo. - Você estava fazendo compras no centro da cidade com sua mãe, Elizabeth, entraram na loja. Sua mãe queria Comprar um chapéu para seu pai.
Ela se recosta no banco, com os olhos ainda fixo em mim.
- Você saiu do fundo da loja - diz. - E um momento depois sua mãe o seguiu.
Sim, lembro de repente, minha mãe me seguira. Ruth sempre teve um memória extraordinária.
Como a família da minha mãe, a de Ruth era de Viena, mas emigrara para Carolina do Norte apenas dois meses antes. Tinham fugido de Viena após o Anschluss da Áustria, quando Hitler e os nazistas anexaram o país ao Reish. O pai de Ruth Jakob pefeffer, professor de história da arte, sabia o que a ascensão de Hitler significava para os judeus e vendeu tudo o que tinha para pagar as propinas necessárias para garantir a liberdade de sua família. Depois de atravessarem a fronteira da Suíça, Viajaram até Londres e, depois, para Nova York, antes de enfim chegarem a Greensboro. Um dos tios de Jakob fabricava móveis a alguns quarteirões da loja do meu pai e durante meses Ruth e sua família moraram em dois cômodos apertados no segundo andar da fábrica. Mais tarde Soube que os vapores incessantes da laca deixavam Ruth tão enjoada a noite que ela mal podia dormir.
- Fomos a loja porque sabíamos que sua mãe falava alemão. Tinham nos dito que ela poderia ajudar. - Ruth balança a cabeça. - Estávamos com tanta saudades de casa, ansiosos por encontrar alguém da nossa terra.
Assinto. Ou pelo menos é o que penso.
- Minha mãe me explicou tudo depois que você foi embora. Teve que explicar. Eu não entendi uma só palavra do que você tinha dito.
- Você deveria ter aprendido alemão com sua mãe.
- Qual era a importância disso? Antes de você sair da loja eu já sabia que nós casariamos um dia. Teríamos todo tempo do mundo para conversar.
- Você sempre diz isso, mas não é verdade. Você mal olhou para mim.
- Não consegui olhar. Você era a garota mais bonita que eu já visto. Era como tentar olhar para o sol
- Ach, Quatsch... - Ela ri. - Eu não era bonita era um criança. Só tinha 16 anos.
- Eu havia acabado de fazer 18. E no fim das contas eu estava certo.
Ela suspira.
- Sim, estava.
É claro que eu já vira Ruth e seus pais antes. Eles frequentavam nossa sinagoga e se sentavam lá na frente, estranhos em uma terra estranha. Minha mãe havia os mostrado para mim depois dos serviços religiosos, olhando-os discretamente enquanto eles iam para casa apressados.
  Semprei adorei as nossas caminhadas para casa nas manhãs de sábado, depois da sinagoga, quando tinha Minha mãe só para mim. Nossa conversa fluía facilmente de um assunto para o outro e eu me deleitava com sua atenção exclusiva.  Podia falar com ela sobre qualquer probelma que tivesse ou fazer qualquer pergunta que passasse pela minha cabeça, mesma a que meu pai teria achado sem sentido. Meu pai dava conselhos. Minha mãe dava conforto e amor.

Uma Longa JornadaOnde histórias criam vida. Descubra agora