Pé Na Jaca

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As crianças correm.


É bastante engraçado. Suas caras felizes, seus sorrisos eufóricos. Vêm descendo a rampa de acesso entre o pátio e os andares das salas de aula, apressadas para comprar o lanche, jogar seus jogos, conversar asneiras. Tadinhas. Mal têm tempo para falar com o faxineiro.


Os outros funcionários conseguem aguentar essa realidade, as moças e moços da cantina, da limpeza, da manutenção... Mas eu não. Você passa anos assim, sendo ignorado por esses merdinhas mal-educados e uma hora se cansa de ser o fantasma camarada. Quer ser a assombração que assusta, que ataca. Um fantasma vingativo cheio de ódio.



Por quinze longos e sofridos anos o colégio permitiu que os funcionários pegassem as jacas da jaqueira da horta. Eu sempre pegava elas quando estavam grandes o bastante e as levava para casa. Para comer? Não, para descontar meu ódio. Toda vez que eu tinha uma, era um dia em que eu tinha que me preparar para limpar uma baita sujeirada; pedaços de jaca estourada, pela parede, pelo chão. Por causa desses estudantes malditos e ingratos.



Tio, faz isso, tio faz aquilo. E não te dão bom dia, nem obrigado.



E aí vêm eles, suas vozes gritando nos meus tímpanos. Animaizinhos insanos apoiados em duas patas. Gralhas irritantes sem asas. Vou chegar primeiro que você, escuto um deles falar. E, claro, eu sorrio.



Como bem quiser, garotinho.


Ontem, no término do meu horário de serviço, eu mais uma vez escalei a jaqueira. Peguei a mais madura que tinha (ao meu acesso, pelo menos). Desci e parti para casa. No caminho, eu pensei o quão seria diferente, o quão seria bom. Desta vez, não seria minha parede a vítima de minha explosão. 


O moleque está quase chegando. Ergo minhas mãos. Movo os braços pra trás, uma gota de suor descendo por minha testa, ansiedade tremendo meus membros. Ele aparece, e eu finalmente lanço. Jaca, eu escolho você! Esses mais de vinte quilos de fruta chocam-se com o peito do garoto que veio na frente (que deve ter uns doze anos e uns quarenta quilos). Um estralo ecoa de tão forte que é a porrada, e depois outro de tão forte que é a queda. Os que corriam atrás pegam carona, batendo no corpo caído, indo pro chão também.



A jaca fica no meio da rampa, causando acidentes; todos que vinham atrás vão pisando e escorregando e batendo em quem escorrega. O famoso efeito dominó. Tem criança ralada, com pé torcido, dedo quebrado, chorando, berrando. Tem de tudo.



E aí uma menininha, os cabelos loiros cobrindo um dos olhos molhados de lágrimas, os joelhos ralados e o osso do indicador direito pra fora, vem engatinhando até mim. Ela puxa a perna da minha calça repetidas vezes e suplica com sua carinha de coitada:



- Tio, por favor, tio. Me ajuda. Tá doendo.



Sua vozinha fina e triste entra por um dos meus ouvidos. Meu olhar é de nojo.Eu fico lembrando de minha vida como fantasma. Recordo minhas mais dolorosas tristezas, minhas lágrimas de raiva por ser tão desprezado por esses e essas agora fodidos ao redor da jaca. Sou puro amargo. E assim sou por causa deles e delas, inclusive dessa garotinha. 


Sua vozinha fina sai pelo outro ouvido.


Então reviro os olhos, chuto sua cabeça. Seu corpo pende prum lado e um sibilo escapa. Aí, digo:



- Eu não. Pau no seu cu.



Dou as costas e vou embora.



Feliz.  


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