Capítulo 1

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O ginásio está lotado, ouvem-se as vozes e gritos da pequena multidão apinhada em um ginásio poliesportivo que fora adaptado para aquele evento de MMA. Em um quarto pequeno e improvisado, Anderson faz os últimos preparativos para enfrentar aquele que será o seu primeiro embate profissional. Ele treinava Muay Thai há vários anos, o boxe tailandês, uma arte marcial oriental importada e adaptada para a prática das artes marciais mistas. Aquele seria só mais um evento do nascente MMA na periferia de Campina Grande. Um evento que atraia a atenção da juventude local, dos desportistas e amantes de lutas. Uma indústria nascente no interior do nordeste a repercutir a prática já consolidada dos grandes centros do sudeste do país.

Aquela semana fora de treinos intensos na pequena e modesta academia onde Anderson treinava. Ele receberia menos de um salário para se digladiar com um oponente desconhecido e tão inexperiente quanto ele, diante de uma pequena multidão barulhenta em um octógono fervilhante que mais parecia uma jaula a asfixiar duas feras assustadas.

Anderson era o filho mais novo de Dona Verônica, uma mulher envelhecida precocemente por uma vida de agruras e carências materiais. Uma mulher que sustentava o lar com as roupas que lavava para fora e as faxinas como diarista. Em sua rotina de labuta e suor, Dona Verônica vira o marido sucumbir ao vício do álcool, um eterno desempregado que ainda por cima alimentava o vício com os parcos recursos que Dona Verônica sofrivelmente adquiria. Recursos esses entregues sob ameaças de agressões e morte. O filho mais velho fora seduzido pelo canto de sereia das drogas e hoje residia na penitenciária da cidade, cumprindo pena por tráfico de entorpecentes. A filha do meio, uma morena vistosa, estava na Espanha fazia três anos, ganhando a vida com o próprio corpo. E Anderson abandonara os estudos, fazendo um bico aqui e ali, sonhando com o mundo dos eventos e artes marciais mistas.

Ao se dirigir ao octógono, sub o som de uma música estrangeira e a cada uivo da multidão em polvorosa, Anderson sentia crescer em seu peito aquele desejo de vencer... Um desejo de sair glorioso daquele primeiro embate verdadeiro de sua vida. Era chegada a hora, era matar ou morrer.

Seria ali, naquele ringue de MMA, que ele começaria uma nova história, um novo Anderson, abandonando de vez aquela vida de agruras e dores. Rompendo a socos e chutes as mazelas de sua vida, espancando a dor da miséria para longe, construindo com os próprios punhos uma vida nova, uma vida de SUCESSO. Eis o dia, eis o momento. Sentia que por toda sua vida esperava por aquele momento. Aquele momento seria seu... E de súbito foi assaltado por aquela imagem de Flávia... Ela estava lá, com um outro cara.

Anderson sempre fora um moleque esperto e desenvolto, na vizinhança era conhecido pelas traquinagens. Destacava-se pela valentia e nunca perdia uma boa briga. Durante a semana ia para a escola a custa de muita pancada que Dona Verônica lhe dava, nos finais de semana ia para a feira central, ajudar os fregueses a carregar as compras ou vigiar carro e ganhar um trocado. Assim transcorreu a infância e adolescência de Anderson, até abandonar os estudos, tendo só o primeiro grau completo ao arranjar um emprego de empacotador de supermercado. À noite treinava Muay Thai e nos finais de semana saia com os amigos pras farras. Foi assim que Anderson conheceu Flávia, uma loira atraente do bairro, com quem namorou e com quem sonhou em construir uma família.

Flávia era loira, tinha um corpo escultural, esculpido por horas e horas de academia que pagava com o emprego de balconista de loja. Flávia vivia com a mãe. Filha única, Flávia sonhava em ser advogada, casar e ter sua independência. O pai nunca soube quem era... Sua mãe nunca lhe disse.

Assim, Flávia, a loira escultural encontrou Anderson, o moreno descolado e lutador de Muay Thai. Uma paixão fervilhante, ardente, regada por muitos desejos e promessas de amor eterno. Isso foi há um ano... Anderson se dirigia para aquilo que sabia ser o seu sucesso, sua resposta para uma vida de agruras e injustiças pessoais. Flávia também fazia parte dessa história, foi, afinal, ela quem cravou o punhal definitivo em seu coração sofrido e o fizera cair de vez naquele propósito de ser um LUTADOR.

Flávia estava cansada daquela vida de balconista de loja, sua mãe ganhava muito pouco naquele salão como manicure e ela queria estudar, fazer uma universidade e aquele namoro com Anderson não tinha futuro... A cama era muito pouco, queria mais... Foi quando Alfredo, um empresário local, se encantou com aquela loira deliciosa, de curvas generosas e um rosto angelical. Assim, do encontro entre ambos surgiu a oportunidade de Flávia sair daquela vida... Anderson sentiu que a sua namorada estava em outra que não teria chances de concorrer com Alfredo, com seu dinheiro, sua Hilux Prata e os presentes caros e festas que ele proporcionava a Flávia. Sentiu, assim, a dor de perder a mulher que amava... De perder para a vida de novo... De sentir mais uma vez aquele amargor que subia do estômago à garganta, um amargor que por vezes o assaltava, uma angústia interior, de nada poder fazer. Perdera mais uma vez.

A cada passo que dava rumo ao octógono, Anderson sentia o silenciar da multidão, os rostos anônimos e alguns conhecidos, as bocas, gritos, gesticulações e luzes do ginásio, nada disso ecoava em seus ouvidos, agora, era só ele e seu oponente. No interior o silêncio.

II

Um soco corta o ar, os punhos cerrados de Anderson encontram o rosto de seu adversário. Seu coração pulsante bombeia vida e sente que todo o seu corpo está energizado. O seu oponente, assimila o golpe e ambos trocam chutes e estudam um ao outro em um raio de média distância. Suas pernas bailam, ele domina o centro do octógono. A multidão vibra e Anderson sente que a vitória está próxima. Acerta outro soco em cheio no rosto do lutador adversário que se inclina e deita no tablado. Anderson literalmente voa sobre ele, em uma avalanche de socos e cotoveladas as quais o oponente, submisso, apenas se limita a defender. Os olhos de Anderson como que saltam de suas órbitas, sente uma força descomunal eclodir de seu interior, expressando-se em golpes violentos e contundentes. O eco da multidão ressoa em seus ouvidos, ele golpeia com determinação aquele que encarna as adversidades da sua vida, as mazelas que até aquele momento tingiram de cinza a sua pálida existência. Quando o adversário de Anderson parecia perder todas as forças... O árbitro os separa, o round acabara e ele não percebeu. Volta ao córner com o peito arfante.

Naqueles poucos minutos de intervalo, Anderson sentiu como que um filme de sua vida a passar em sua cabeça. Enfim seu sonho se realizara. Ele marchava com determinação para uma vida de lutador. Estava pronto para vencer, sentia-se ali invencível. Aquela primeira vitória seria dedicada à sua mãe.

O segundo round começa, Anderson novamente, dominando o centro do octógono empurra o adversário com chutes potentes contra a tela de proteção. Suas pernas são como lâminas que cortam a musculatura da perna de seu oponente que começa a expressar dor em cada chute recebido. Anderson só espera ele abrir a guarda para desferir o golpe certeiro. Anderson então dá um passo à frente, para sufocá-lo contra a tela de proteção e no meio desse passo rumo à vitória, enxerga um clarão... O mundo de Anderson gira e rapidamente se apaga.

Sente sua perna dormente, olha para ela e ela está enfaixada. As mãos parecem inchadas e maiores, sua visão está embaçada e enxerga apenas metade do seu campo visual, seu peito está dolorido e tem dificuldades para respirar. É quando se descobre em cima de uma cama de hospital, em um corredor, repleto de gente que ele nunca viu antes. Ele está só, não existe ninguém ali cuidando dele, ele está abandonado em um corredor do SUS. Os gritos inflamados dos torcedores apaixonados pelo MMA agora são substituídos pelos gemidos de doentes, são pessoas vítimas de acidentes, tiros, facadas... Anderson, o lutador, os têm como seu único coro a recepcioná-lo nessa entrada no pódio das glórias dos grandes gladiadores. O coliseu de Anderson se converteu, em um relance, em um fervilhante corredor de hospital público. E ele ali, abandonado ao seu próprio destino.

Começa a entender o que realmente acontecera, seu sonho virara um pesadelo. Sua primeira luta profissional como lutador de MMA fora um fracasso e os quatrocentos reais que recebera nem sequer cobririam os custos para ele restabelecer sua saúde, agora em frangalhos. Mais do que a dor do corpo, Anderson, o lutador, sentia a dor de sua alma. A vitória lhe escapou por entre os dedos... A gloria lhe foi negada, ele, mais uma vez nessa vida, perdeu... Após todas as agruras, treinos e sonhos, Anderson recebera como prêmio um corpo moído por golpes, a solidão dos derrotados, tudo isso sintetizado em um leito do SUS... É quando uma enfermeira se dirige a ele e lhe avisa que não tem previsão de quando ele será submetido à cirurgia... "Tá faltando médico!"

As lágrimas correm pelo rosto do Lutador e ele, na solidão de sua dor, repete para si mesmo que aquele não seria o fim de sua jornada... "Um lutador não desiste!"

                                                                                        



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⏰ Last updated: Jan 18, 2016 ⏰

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O LutadorWhere stories live. Discover now