Marcelo não pôde impedir a lembrança enquanto aguardava sentado naquela cadeira de plástico. A imagem lhe veio ao ver o gordo à sua frente fumando seu cigarro, tossindo e pigarreando a cada tragada. Quando ouviu a sua voz chiada e rouca, intercalada por espaços curtos para respirar, não teve jeito, a lembrança veio de pronto.Voltou ao tempo em que era criança e asmático. Um dia seus amigos decidiram brincar de algo que ouviram na escola. Consistia basicamente em encostar um dos colegas na parede e depois, enquanto ele inspirava profundamente os pulmões, apertar com toda a força o seu peito. O efeito, segundo relatos, seria muito maneiro, algo semelhante a um desmaio. Marcelo era novo na turma e resolveu ser o voluntário para poder se enturmar. Que mal haveria em um simples desmaio? No entanto, quando veio o aperto no peito, não conseguiu entender como aquilo poderia ser maneiro. Sentiu como seus brônquios estivessem cimentados, ou simplesmente colados por algum vácuo, quando tentou respirar. Flashes da maior crise de asma que teve quando criança pipocaram em sua cabeça. As noites internado com soro na veia, o chiado permanente impedindo-o de inflar os pulmões e o medo de morrer. De uma hora para outra sua consciência se esvaiu, afundando dentro do seu crânio, e o corpo desabou. Os amigos disseram que ele ficara desacordado apenas por uns poucos segundos, mas para Marcelo tinha passado por toda uma vida, a dele.
- Marcelo Torres? - perguntou um senhor gordo, não o fumante, mas barbudo e de terno e gravata surrados. Pode me acompanhar? Sou o Moraes, gerente comercial.
Marcelo se levantou e acompanhou Moraes pelos corredores da rádio.
- Espero que não tenha esperado muito? - desculpou-se Moraes.
- Nada, tá tranquilo. Um cochilo de vez em quando é bom.
- Ainda mais à essa hora, né? Desculpe mesmo. Desde o falecimento do dono da rádio estamos passando por algumas reestruturações. Os filhos assumiram pedindo relatórios disso e daquilo, querendo entender como funciona o negócio e falando de inovação e planejamento estratégico. Por isso demorei em vir te buscar. O último pedido foi um resumo de audiência dos últimos vinte anos. Tive que preparar tudo isso para amanhã de manhã cedo, por isso o serão.
- Uau, tão indo fundo mesmo.
- Nem me fale. Diferente dessas novas rádios que têm por aí, a ZYC450, a Metropolitana, sempre foi como uma segunda casa para seus funcionário. Pra falar a verdade, muita gente preferia estar aqui do que ao lado de suas mulheres. Nunca precisamos dessas coisas novas, como planejamento estratégico, análise SWOT e o escambau. Sabíamos o que fazer e conhecíamos os nossos ouvintes. Já tivemos até um casamento aqui mesmo, sendo transmitido ao vivo - Moraes abriu um enorme sorriso e Marcelo ficou imaginando se ele não teria sido o noivo, ou a pessoa quem transmitiu o evento. São cinquenta anos no ar. Temos muitas histórias para contar, histórias de gente que voltou da guerra, das músicas que ficaram apesar de seus intérpretes terem partido. Alguns de nossos programas são mais antigos que muitas emissoras de TV por aí. Há muita tradição aqui, se há. É preciso ter respeito por isso.
- Olha, sei onde quer chegar - disse Marcelo parando. Eu realmente sinto muito. Não tenho intenção de desrespeitar nada. Apenas aceitei um emprego.
- Não estou falando de você, garoto - disse Moraes com um sorriso triste. No seu lugar, faria o mesmo. Você não tem raiz alguma para negar aqui. É sobre os filhos do chefe de quem estou falando. De qualquer forma, chegamos.
Moraes empurrou a porta e entrou. A sala possuía mesas de som, microfones, toca discos de vinil e CD e uma parede lotada de discos, a grande maioria mais velhos que Marcelo. Era de longe bem maior que o quartinho que ele usava para mixar suas trilhas, no entanto não conseguiu dar mais do que dois passos lá dentro. Havia uma infinidade de pessoas na sala, jovens e velhos, todos atrás de um senhor negro, meio careca, de boina que estava operando o maquinário. Ele se virou para Marcelo e Moraes com uma cara emburrada ao ouvir a porta bater.
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Amigo da Madrugada
HorrorUma rádio possui seus ouvintes fiéis. Nem todos ficam felizes com mudanças. Principalmente aqueles que a ouvem regularmente, há mais de 80 anos.