A Audiência

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"Sente-se", disse a voz no fone de ouvido de Marcelo.

O locutor sentou-se na outra cadeira do estúdio, o mais distante possível daquele homem. Apalpou a calça sentindo o metal pequeno da chave da porta no bolso e imaginou se teria uma oportunidade de usá-la.

- Quem é você? -  perguntou Marcelo. 

O estranho tragou mais uma vez seu cigarro antes de responder.

"Somos sua audiência", disse ele pelo aparelho e sorriu sem dentes. Não, havia dentes, eram pequenos, quase imperceptíveis, em fileiras e afiados. "Não gostamos do seu barulho, magrelo. Também não gostamos de vir até aqui para lhe dizer isso. Já havíamos feito isso antes, achávamos que não precisávamos mais. Mas pelo visto, o recado não foi bem dado da outra vez".

- Não, senhor Dormum, está tudo certo - gritou Jota do lado de fora da porta. Está tudo bem. O Marcelo é novato, mas já entendeu tudo. Diz pra ele, Marcelo. Peça desculpas pelo incômodo.

Como o Jota podia ouvi-lo? Marcelo encarou aquela criatura. Então, ela era o motivo daquilo tudo. Não era porque queriam moldá-lo aos velhos padrões. Mas sim porque havia essa audiência exigente, sinistra e estranha.

- O que são vocês? - perguntou Marcelo e ouviu Jota xingar do lado de fora.

O cigarro caiu no chão, o ancião não fez menção de apagá-lo com o sapato. 

"Não gostamos de sua época, magrelo. Queremos sossego e música agradável. Você vai tocá-las para nós".

- Ou o quê? - disse Marcelo sentindo a velha mágoa.

O velho pareceu piscar por um momento na escuridão, não acostumado com o confronto, depois pareceu se divertir.

"Sempre temos o que perder, magrelo".

O velho recuou o corpo para a escuridão e então ele não estava mais lá. A luz piscou avermelhada quando os geradores voltaram a funcionar, mas foi por pouco tempo, pois logo em seguida as luzes voltaram ao normal.

Antunes estava agachado em sua sala respirando profundamente de cabeça baixa. Então Marcelo foi até a porta e abriu-a com a chave do bolso. Jota estava lá, usando fones de ouvido ligados ao seu celular. Seus lábios estavam apertados e o olhar era de pesar e não de ódio como era esperado. Havia dor ali, um sentimento de pena que causou arrepio na espinha de Marcelo.

- O que era aquilo? - perguntou Marcelo.

- Precisamos conversar, mas antes, pelo amor da porra de Deus, bota Edith Piaf na merda do rádio.

Amigo da MadrugadaOnde histórias criam vida. Descubra agora