A queda de uma coisa desse porte deveria fazer maior barulho.-WILLIAM SHAKESPEARE
Antônio e CleópatraMinha caminhada solitária de três meses pela costa oeste dos Estados Unidos teve muitos começos. Houve a primeira e repentina decisão de fazer a trilha, seguida pela segunda decisão, mais séria, de realmente fazer e então o longo terceiro começo, composto de semanas de compras, empacotamento e preparação. Houve o pedido de demissão no emprego de garçom, a conclusão do divórcio, a venda de quase tudo que eu tinha, a despedida dos amigos e uma última visita ao túmulo da minha mãe. Houve a viagem de carro pelo país, de Mineápolis a Portland, no Oregon, e dias depois o embarque em um voo para Los Angeles, a carona para a cidade de Mojave e outra para o local onde a Pacific Crest Trail cruzava uma autoestrada.
Em que momento, afinal, aconteceu de fato o fazer, rapidamente seguido pelo assustador entendimento de o que fazer significava, seguido pela decisão de desistir de fazer, porque seria absurdo, sem sentido e ridiculamente difícil e muito mais do que eu esperava que seria fazer, e eu estava totalmente despreparado. E então houve a decisão de realmente fazer a trilha.
Ficar e fazê-la, apesar de tudo. Apesar dos ursos, das cascavéis e das fezes dos pumas que nunca vi; das bolhas e cascas de feridas, dos arranhões e machucados. Da exaustão e da privação; do frio e do calor; da monotonia e da dor; da sede e da fome; do orgulho e dos fantasmas que me assombravam enquanto caminhava sozinho por 1.770 quilômetros do deserto de Mojave ao Estado de Washington.
Por fim, uma vez que realmente fui e fiz, que caminhei todos aqueles quilômetros durante todos aqueles dias, houve a percepção de que o que eu achava ser o começo não tinha sido de fato o começo. Na realidade, minha caminhada pela Pacific Crest Trail não começou quando tomei a repentina decisão de fazê-la. Começou antes de eu sequer imaginar fazê-la, mais precisamente quatro anos, sete meses e três dias antes, quando estava em um pequeno quarto da Clínica Mayo, em Rochester, Minnesota, e soube que minha mãe ia morrer.
Eu estava vestido de verde. Calça verde, camisa verde. Era uma roupa que minha mãe tinha costurado- ela fez roupas para mim a vida toda. Algumas eram exatamente o que eu sonhava ter, outras nem tanto. Não era louco pelo conjunto verde, mas o usei de qualquer forma como se fosse uma penitência, uma oferta, um talismã.
Durante todo aquele dia com o conjunto verde, acompanhando minha mãe e meu padrasto Eddie de andar em andar na Clínica Mayo enquanto minha mãe era enviada de um exame para outro, uma oração não me saía da cabeça, embora oração não seja a melhor palavra para descrever aquela repetição de palavras. Eu não era humilde diante de Deus. Nem mesmo acreditava em Deus. Minha oração não era: Por favor, Deus, tenha piedade de nós.
Eu não pediria misericórdia. Não precisava. Minha mãe tinha 45 anos. Ela parecia bem. Por muitos anos foi quase vegetariana. Plantava cravos nos canteiros do jardim para afastar os insetos em vez de usar pesticidas. Minha irmã e eu éramos obrigados a engolir dentes de alho cru quando ficávamos resfriados. Pessoas como minha mãe não têm câncer. Os exames na Clínica Mayo provavelmente confirmariam isso, desmentindo o que os médicos de Duluth disseram. Eu tinha certeza. Quem eram afinal de contas aqueles médicos de Duluth? O que era Duluth? Duluth? Duluth era uma cidadezinha fria do interior onde os médicos que não sabiam merda nenhuma do que estavam falando, diziam a vegetarianos comedores de alho, usuários de remédios naturais e não fumantes de 45 anos que eles tinham câncer de pulmão em estágio terminal, isso era o que era.
Que se fodam.

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wild//l.s-hiatus
Fanfiction❝Eu tinha muita dificuldade em acreditar nas coisas, mas também tinha a maior dificuldade em não acreditar. Era tão curiosa quanto cética. Não sabia onde colocar a fé, se é que havia tal lugar, ou mesmo qual era o significado preciso da palavra fé e...